Se apenas os homens votassem, André Ventura seria primeiro-ministro? São mesmo os homens mais novos que estão a votar na extrema-direita? Quem propaga o discurso misógino nas redes? Neste artigo, trataremos destas e de outras questões, que vão da manosfera à urna de voto.
Manosfera: comunidade tóxica ou terra de mercenários?
Há quem chame “manosfera” a um conjunto de comunidades virtuais onde a misoginia surge como principal meio para uma socialização agressiva e odiosa. Devemos ter cautela nesta definição. As comunidades, mesmo aquelas dominadas por relações autoritárias, contêm sempre, no seu discurso de poder, alguma reverberação das práticas sociais quotidianas. Não parece ser o caso na manosfera. A escritora Nuria Alabao explica isso na sua série dedicada a esta realidade. Dos “incels” aos “nofuckers”, passando pelos “gymbros” e “criptobros”, encontramos uma base comum: o discurso misógino é orquestrado, financiado, produzido e direcionado.
Quem passou pela escola ou pela universidade, quem já treinou num ginásio frequentado maioritariamente por homens, quem jogou FIFA ou PES na Playstation com os seus primos sabe. Os ambientes mais masculinizados são poluídos pela misoginia e pelo machismo, mesmo que através de rituais e conversas pretensamente benevolentes. Em toda a sua pletora de expressões, o que faz a manosfera é muito diferente: eleva o ódio através de um discurso que produz identidades, cria uma cultura e orienta uma escolha política. Bem vistas as coisas, o espírito de McLuhan parece pairar sobre este feudo, pois não há manosfera sem o seu meio, as redes sociais, que operam num contexto – o da perda de referências coletivas, criada pela era do hiperindividualismo neoliberal.
O problema da manosfera não é, portanto, a comunidade que se radicaliza contra as mulheres. Essa história tem milénios. O problema são os mercenários que ocupam o trono e decretam uma cruzada em defesa da fortuna masculina. A agenda é clara e assenta em três ideias, que encontram sempre uma tradução política.
A primeira ideia é a da despossessão masculina, criada a partir da imagem da vítima que perdeu o direito a comandar a casa. São muitos os influencers que entram pelo telemóvel e que nos dizem que, agora, as vítimas são os homens. Warren Farrell, um dos expoentes norte-americanos que tratam a “crise da masculinidade”, explica: “os rapazes de hoje estão a crescer num mundo onde se sentem culpados apenas por serem rapazes”. E este recurso à vitimização não pretende apenas retratar estados de alma. Em 2014, o líder de um recém-criado partido político, o VOX (Estado espanhol), explicava com sinceridade, referindo-se ao aumento da denúncia de casos de violência doméstica “vemos todos os dias, em todos os eventos que o VOX convoca, muitas pessoas afetadas por falsas acusações. E quando falamos daqueles que são afetados por falsas acusações, não são apenas homens. São homens e mulheres. Falamos das mães destes homens, das filhas destes homens, e também, em muitos casos, das atuais companheiras destes homens, que foram o gatilho para algumas das queixas. Não queremos uma lei que criminalize o homem”. Como observamos, a tática não é desumanizar as mulheres, mas colocar o homem no centro das opressões sociais de um mundo que avançou rápido demais.
A segunda ideia assenta numa teologia da prosperidade individual a partir de uma crença liberal, mas também conservadora, onde ao homem tudo cabe na balança das tristezas e conquistas. Jordan Peterson, outra estrela deste firmamento, explica que “a verdadeira masculinidade não é dominância; é assumir responsabilidades, proteger e prover”. Encontramos, portanto, um relevante vínculo entre a imagem de responsabilização do indivíduo, presente em meios conservadores a partir da defesa dos “valores familiares”, e a promessa da opulência propalada pelos apóstolos do neoliberalismo que anunciam as alvoradas do self-made man empreendedor. Torna-te um super-homem, acorda às 5h, abraça a disciplina, ignora as distrações e serás o melhor, para ti e para os teus. Está claro que as desigualdades estruturais como causa da pobreza e as funções sociais do Estado e o papel da comunidade como resposta coletiva a essa realidade têm pouco espaço neste universo.
A terceira ideia procura situar o lugar da mulher, fazendo regredir os seus direitos sexuais e reprodutivos. Neste caso, não temos que ir além-fronteiras para encontrar um exemplo histriónico da manosfera empenhada em oprimir as mulheres. Recentemente, João Barbosa, mais conhecido pelo seu nome de mercenário das redes, Numeiro, sentenciou: “mulher que namora, não sai à noite”. Este adágio fala por si, mas traduz uma realidade mais larga. A extrema-direita não hesita em fazer regredir os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, como marca identitária conservadora. Mas há também uma segunda camada deste discurso, instigada por personagens como Orban ou Éric Zemmour, onde a xenofobia associada à tese da grande substituição cumpre o seu papel político: se as mulheres europeias não estão dispostas a ser mães, as imigrantes assumirão essa função. Em suma, o feminismo foi longe de mais e põe em causa a própria “civilização”.
A manosfera ainda não define eleições, pois é um entre muitos outros dispositivos da extrema-direita, mas ocupa cada vez mais espaço e quer criar um exército de mercenários.
São os homens que votam à direita ou são as mulheres que resistem mais à onda conservadora?
Nas últimas décadas do século XIX, o movimento sufragista agitou espíritos e foi perseguido por fantasmas. Em 1881, Oliveira Martins decretava com convicção: “se a mulher votasse, seria apenas o instrumento do padre; não votaria segundo a sua consciência, mas segundo o mandado do confessor”. Muitos outros exemplos podemos encontrar, nas décadas seguintes, desta tese que menosprezava a capacidade de decisão das mulheres perante uma urna, isto num país onde a existência do voto universal completou apenas meio século. Mas Oliveira Martins perdeu a aposta. Em 2025, é difícil encontrar um país onde o voto seja livre e universal e não sejam os homens os que mais estão subjugados à influência clerical, reacionária e obscura na sua escolha eleitoral. Parece haver poucas dúvidas na leitura dos dados públicos: os homens votam mais à direita e as mulheres votam mais à esquerda. E vale a pena perceber melhor estes números, lembrando que as eleições não esgotam as formas de expressão e ação política.
Se olharmos, por exemplo, para o voto agregado das últimas eleições europeias – eleições com grande abstenção e forte mobilização do eleitorado fiel a cada partido – verificamos que os homens votaram mais em partidos de extrema-direita do que as mulheres (gráfico 1). E não encontramos variações etárias, pois nos diversos escalões (16-29; 30-64; 65+), os homens votaram na casa dos 20% nestes partidos. Já no caso das mulheres, entre as que têm mais de 65 anos, 17,7% confiaram o seu voto à extrema-direita, e entre as que têm 16 e 29 anos, apenas 13,9% o fizeram. Primeira constatação: homens votam mais na extrema-direita do que as mulheres, mas são as mais jovens que mais rejeitam estes partidos.
Gráfico 1: diferença de género no voto em partidos de extrema-direita por grupos etários em 2024.

Fonte: The youth gender gap in support for the far right, Milosav (2025).
Deixemos a Europa e rumemos ao Brasil, país fortemente polarizado. Também neste caso, foram as mulheres (56%) que, votando em Lula na segunda volta, derrotaram Bolsonaro, que obteve apenas 42% do voto feminino. E também no Brasil são as eleitoras mais novas (16-29) que mais rejeitaram Bolsonaro (62%), em comparação com as mais velhas (56%). A diferença, no Brasil, é que quanto mais novos, maior é o número de eleitores masculinos que deram o seu voto ao representante da extrema-direita (53%), enquanto os homens mais velhos resistem mais a essa opção (44%). É evidente que muitos outros fatores – classe, profissão, geografia, escolarização – influenciaram as acirradas eleições presidenciais brasileiras de 2022, mas a tendência existe: em cenários de polarização, mulheres mais novas rejeitam a extrema-direita, homens mais novos confiam mais o seu voto a estes partidos.
Gráfico 2: diferença de género no voto em Lula e Bolsonaro, nas eleições de 2022.

Fonte: O Globo.
Então, e Portugal? Felizmente, a resposta à primeira frase deste artigo é não. Se apenas os homens votassem, o partido de André Ventura não seria o mais votado em Portugal. Mas tal só acontece porque temos a agradecer, e muito, aos mais velhos. Nas eleições de 2025, o Chega foi o partido mais votado entre os homens até aos 55 anos. E se é certo que, no total de votos, só 20% das mulheres votaram na extrema-direita, ao isolar o escalão etário entre os 25 e 34 anos, verificamos que esse número sobe para quase 30%. Em Portugal, o Chega só não é o primeiro partido graças às mulheres e aos homens mais velhos, mas a rejeição das mulheres tem vindo a diminuir, especialmente entre aquelas que têm entre 25 e 34 anos e escolarização secundária.
Gráfico 3: diferença de género por escalão etário no voto na AD, PS e CHEGA, nas eleições de legislativas em Portugal (2025).

Fonte: As bases sociais do novo sistema partidário português, Pedro Magalhães (2025).
O que podemos aprender e como podemos combater?
Nesta encruzilhada de género, são muitas as incertezas políticas, mas podemos trabalhar algumas hipóteses de resistência. A fórmula que junta uma juventude aprisionada pelo isolamento social e uma terra sem lei nas redes sociais tem tudo para ser reacionariamente explosiva. É evidente que precisamos de defender o espaço público e comunitário, assim como regular fortemente os conteúdos das redes sociais. Banir ou restringir contas das redes sociais de mercenários como Numeiro não é um ataque à liberdade de expressão, é levar a sério a proteção coletiva dos direitos fundamentais. Temos também de defender o bairro, a escola, o direito ao desporto e à cultura como instrumentos antifascistas de socialização contra o esgoto misógino.
Este é o caminho. Porém, se a manosfera é apenas uma parte do problema, por que resistem, então, mais as mulheres à onda conservadora e reacionária que toma conta da Europa e do mundo?
Uma primeira hipótese diz-nos que as mulheres mantêm uma maior relação com os serviços públicos, seja na sua utilização (Ensino Superior, SNS, Segurança Social), assim como na sua manutenção (maior número de funcionárias públicas). O ataque da direita e da extrema-direita aos serviços públicos dificultaria a fidelização do voto de quem conta e confia nestes serviços. Neste caso, o mito liberal do “cada um por si” tem menos adesão entre as mulheres. Defender os serviços públicos é combater a direita.
A segunda hipótese é a de que as mulheres dependem mais da comunidade e querem defender-se do abuso. A dupla jornada de trabalho e a sobrecarga dos cuidados chocam com a imagem da inversão do papel da vítima no espaço privado. A desvalorização da violência doméstica e o papel de subalternidade das mulheres nas famílias são temas caros à extrema-direita.
A terceira hipótese assenta na ideia de que, sobretudo entre as mulheres mais jovens, o direito a uma sexualidade livre e a políticas públicas de saúde (direito a um aborto seguro, por exemplo) continuam a agregar forças à esquerda, perante a ameaça conservadora da união das direitas nestes temas.
As três hipóteses estão possivelmente corretas e correlacionadas. Mas explicar as causas do voto não faz uma política, muito menos uma estratégia para combater a extrema-direita. O feminismo anticapitalista e socialista continua a ser a melhor agenda para a mobilização de mulheres e homens contra o interesse de classe que une os mercenários da manosfera e os farsantes da extrema-direita.