Ana Campos, militante feminista desde os anos setenta, é ativista da Associação para o Planeamento Familiar há mais de trinta anos. Exerceu atividade até 2019 na Maternidade Alfredo da Costa, da qual foi diretora clínica. Participou ativamente nas campanhas pela despenalização do aborto, direito que ainda não está totalmente assegurado. Não podíamos deixar de a desafiar para conversar sobre direitos sexuais e reprodutivos quando nos aproximamos de mais um aniversário do SIM no referendo de 2007.
L: Começava por te perguntar se achas que o direito ao aborto está a ser garantido neste momento.
AC: Muitas pessoas têm muita dificuldade em aceder ao aborto atualmente. Há neste momento cada vez maior dificuldade de encontrar hospitais onde a interrupção de gravidez não tenha deixado de ser feita. Em áreas por todo o país, já não é só Alentejo ou Açores. Já temos muitos hospitais a não fazer interrupção de gravídez.
L: O problema principal será a objeção de consciência?
AC: A justificação é a objeção de consciência. Mas a questão é considerar-se, entre ginecologistas e obstetras, que o aborto é uma questão menor.
L: Achas que serviços de saúde sobrecarregados preferem deixar isso para segundo plano?
AC: Não é para segundo plano, é entregar aos privados. Mandar as pessoas para a Clínica dos Arcos.
L: Então achas que objeção de consciência é mais uma desculpa do que efetivamente uma realidade.
AC: Acho que objeção de consciência é uma desculpa. Ninguém pergunta a ninguém desde há muitos anos se é objetor de consciência. E além disso há pessoas que não são objetoras e tentaram abrir a consulta da IVG no seu hospital mas foram dissuadidas.
L: Como é que se poderia contornar isso?
AC: Contornar isso é explicar que a objeção de consciência não pode limitar um direito formalmente constituído. Portanto, se existe objeção de consciência, os hospitais devem contratar pessoas não objetoras para fazer interrupção de gravidez. A par de que é muito importante que haja formação permanente das pessoas, internos e jovens especialistas, porque o aborto faz parte dos direitos sexuais e reprodutivos, faz parte do conjunto da especialidade de ginecologia e obstetricia. Têm de aprender as técnicas todas e isso inclui o aborto.
L: E quanto ao aumento do tempo de gestação legal, que aqui é 10 semanas e em Espanha 14? Faz sentido aumentar para as 12?
AC: Acho que faz todo o sentido. Acho que faz sentido mudar quatro pontos na lei. O primeiro é a idade gestacional passar de 10 para 12 semanas. Às 12 semanas ainda é possível fazer interrupção médica de gravidez em ambulatório; depois das 14 semanas requer outras coisas em termos cirúrgicos e aí, sim, os hospitais não têm condições.
A outra questão importante é acabar com a obrigatoriedade da declaração de dois médicos para atestar que o aborto pode ser realizado. Neste momento, há um médico que faz uma ecografia que data uma gravidez, e tem de haver um outro médico diferente a confirmar que esta interrupção pode ser feita. Não há nenhum ato médico nem cirúrgico em medicina que exija legalmente a presença de duas confirmações. Isto foi uma forma, na altura, de contornar todos aqueles que eram muito descrentes em relação à interrupção de gravidez e achavam que as mulheres iam agora todas abortar e que os médicos iam ser coniventes. Nada disso se verificou e não faz sentido um técnico ter de ser supervisionado por outro para atestar que a interrupção pode ser feita.
A terceira questão é o tempo de espera de cinco dias, obrigatório para toda a gente e que não tem lógica existir. Quando as mulheres vão dizer que pretendem fazer um aborto, já pensaram o suficiente e não devia haver obrigatoriamente um tempo de espera. É evidente que há sempre mulheres que não têm uma opinião totalmente formada quando vão à primeira consulta. Então nesses casos, sim senhor, permite-se o tempo até à decisão definitiva.
Estes três são os pontos mais urgentes. Um quarto ponto tem a ver com o diagnóstico pré-natal, o alargamento do prazo em que se pode fazer a interrupção de gravidez quando há um feto com malformação. A maior parte dos técnicos considera que 24 semanas pode ser muito escasso para se formular um diagnóstico. Às vezes é preciso protelar a interrupção para se saber se há de facto uma malformação,. E como essas interrupções são habitualmente feitas em meio hospitalar, faz todo o sentido que se possa prolongar esse tempo de decisão. Porque assim é claro que se faz mais interrupções de gravidez, se as pessoas quiserem cumprir a lei. E há situações que até nem teriam diagnóstico tão pesado como aquele que parecia ser ao início. A decisão podia ser diferente.
L: Algumas ativistas questionam se a questão do aborto em caso de malformação pode ser uma forma de eugenia. Isto faz-te sentido?
AC: Olha, eu acho que as mulheres é que decidem se querem fazer ou não uma interrupção de gravidez. Há pessoas que podem querer ter um bebé com trissomia 21 mas há outras que não querem. Porque em todas as decisões a primeira escolha é sempre da mulher. E do casal. A importância desses embriões é a importância que os seus pais lhes dão. Em primeiro lugar está a escolha individual, seja com o aborto, seja na morte medicamente assistida. E é essa escolha individual que muita gente não aceita, não aceitam que exista livre-arbítrio. Eu ter o direito de decidir sobre coisas que dizem respeito à minha vida mesmo que outras pessoas não fizessem assim. É um direito que me assiste, ponto.
L: E o que pensas sobre a esterilização de pessoas com deficiência, que parece ainda acontecer em Portugal?
AC: Há muito tempo era assim. Neste momento a contracepção é de tal forma possível que a questão da esterilização não é aceite. Se uma pessoa está numa instituição, a obrigação da instituição é fazer a vigilância dos prazos em que os vários métodos contraceptivos têm de ser substituídos. Neste momento, ninguém aceita fazer uma esterilização a não ser que a própria pessoa peça e tenha as condições legais para isso.
Novamente, tudo passa pela importância do esclarecimento sobre o que significa o livre-arbítrio e o que significa autonomia e liberdade individual. Não nego que possa ter havido um descurar dessa formação, e é também por isso que há um declínio da aceitação dos técnicos em realizar IVG. É que as questões dos direitos humanos e da liberdade individual não estão a ser devidamente tratadas nos cursos de técnicos de saúde, sejam eles médicos, enfermeiros, auxiliares da ação médica…
L: Não achas que há também um problema de conservadorismo sobre o sexo e o prazer? Porque há sempre estes estigmas, seja sobre pessoas com deficiência, ou sobre a terceira idade…
AC: Eu espero que não seja essa a questão principal. E penso que muito se avançou nessa forma de pensar, a começar pelas mulheres que se consideram agora com direito à sua sexualidade. Mas eu sou do tempo em que o planeamento familiar terminava aos 40 anos. Porque depois dos 40 anos, as mulheres não faziam sexo. Ponto. Era o aniquilar do prazer sexual.
L: A pílula foi uma conquista muito importante também por isso.
AC: Para mim a pílula é a grande conquista que permite a autonomia das mulheres. Não houve nada comparativamente à pilula, nem o acesso à educação, nem a situação económica, nada. O que permitiu a autonomia das mulheres foi a pílula. A possibilidade de decidir que só seriam mães quando quisessem, que a maternidade era algo que escolheriam, o momento e a forma. Portanto, eu considero que a pílula foi de facto a grande revolução do século XX para as mulheres.
L: Haveria mais abortos antes disso, não é?
AC: Com certeza.
L: Quando é que em Portugal houve mesmo o boom da pílula?
AC: A pílula era proibida até 1974, embora já fosse usada em algumas consultas como “regulador da menstruação”. Em 1976 começa a ser criado o Planeamento Familiar e, em 1978, Albino Aroso institui a prática do Planeamento Familiar como uma técnica nos cuidados de saúde primários. Aí começa a haver, generalizadamente, consultas de planeamento familiar.
L: Com a distribuição da pílula como hoje?
AC: Não havia no centro de saúde ainda. As pessoas compravam a pílula receitada pelo médico.
L: E tu estiveste envolvida precisamente nessa fase de transformação.
AC: Eu comecei a trabalhar em 1976. Serviço Médico à Periferia. Abri a primeira consulta de planeamento familiar no sítio onde eu estava. E apanhava coisas como estas: uma mulher que dizia que o marido era muito compreensivo porque uns dias ela tomava a pílula e outros dias tomava ele.
L: Ainda havia muito desconhecimento. Muitas mulheres nem deviam dizer ao marido que estavam a tomar…
AC: Muitas sim. Para muitas, a única forma de terem algum controlo era esconder do marido a prática de uma contracepção. Por isso é que foi tão importante.
L: Hoje em dia muita gente deixa de tomar a pílula pelos riscos que pode ter para a saúde. É importante evoluir para pílulas mais seguras do que as que já temos?
AC: As pílulas atuais são muito seguras, sobretudo as que são prescritas e são da última geração, com baixas doses de estrogénio e progesterona e com menor risco de trombose venosa. As mulheres que fumam não devem tomar a pílula, sobretudo depois dos 30 anos. Há que fazer escolhas nesse campo. Mas atualmente há mais ou menos o culto do naturismo, da recusa de medicamentos de farmácia, preferindo os remédios “naturais” que são muitas vezes produzidos sem o controle que os medicamentos de farmácia têm. Acho que é uma moda, que pode passar. É preciso é que as pessoas não engravidem sem querer, podendo fazer métodos seguros.
L: Noto essa moda entre círculos mais jovens, também resultado das redes sociais, de voltar a um certo naturismo. Por exemplo, conheço várias pessoas que estão apenas a fazer “controlo de ciclos”. E há muita gente a fazer partos em casa. O que é que pensas sobre esta moda? É seguro?
AC: Não é por acaso que a medicina evoluiu. As pessoas que utilizam métodos naturais depois vão ter mais filhos (se não se importarem de os ter) ou vão fazer mais abortos. É tão claro quanto isso. E as pessoas dos partos em casa vão ter alguns dissabores, com bebés que podem morrer. Ou mesmo elas próprias. Em Portugal não temos uma estrutura de saúde que possa garantir segurança a um parto no domicílio. Em primeiro lugar porque nem sequer temos a noção das pessoas que fazem partos no domicílio. E depois não temos nenhuma ligação entre a instituição de saúde próxima do sítio onde está a haver um parto no domicílio, para que numa emergência a resposta possa ser imediata. Na Holanda é assim: qualquer parto em casa tem contacto com o hospital da área e os contactos são permanentes e frequentes. Mas, mesmo assim, o que as pessoas não dizem é que há 40% desses partos que terminam no hospital.
L: Em 2022 o número de abortos aumentou, contrariando a tendência nos anos anteriores. Sugeriste numa entrevista que isso se poderia dever ao maior desconhecimento de alguma imigração quanto aos métodos contraceptivos. O que achas que falta fazer no trabalho com estas populações no que toca a saúde sexual e reprodutiva?
AC – Falta que possam ter acessibilidade e facilidade em encontrar uma consulta de planeamento familiar. A maior parte não tem médico de família e é difícil que outros médicos se encarreguem do planeamento familiar, tal como estão agora estruturados os centros de saúde.
L: E apesar de as gravidezes adolescentes terem diminuído em Portugal, isso continua a ser um problema. Os jovens têm cada vez mais acesso à informação, o que se pode fazer mais?
AC – É preciso acesso e informação sobre contraceção de emergência, que quase deixou de ser falada. E sobre como tomar a pílula e causas de falhas. Mas, mesmo considerando que ainda há gravidez não desejada na adolescência, têm recurso ao aborto. E, das estatísticas do último relatório de IVG, verifica-se que neste grupo há mais interrupções de gravidez do que partos.
L: Recordas-te do dia em que SIM venceu o referendo? Acreditaste que seria possível?
AC – Recordo, sim e muito bem! Apesar de termos a noção de que a campanha tinha corrido muito bem e que, segundo estudos da comunicação social, havia uma maioria da população a favor da mudança da lei, tínhamos o trauma do referendo anterior. À medida que se iam conhecendo os resultados, a possibilidade de vitória era real. Até que no Altis tivemos a confirmação dos resultados. Foi uma enorme alegria!
L: O que foi mais impactante para ti nesse processo?
AC – A forma como todos os grupos que defendiam o Sim trabalharam em colaboração, multiplicando cada um iniciativas que considerava mobilizadoras. Estive no grupo “Médicos pela Escolha”, trabalhámos imenso. Tivemos algumas dificuldades em debates mas foi clara a forma como as superámos.
L: O que é urgente fazer no que toca a direitos sexuais e reprodutivos?
AC: Neste momento é a formação em relação às diferentes orientações sexuais. E a aceitação pelos técnicos das várias orientações. Ninguém quer ver um transsexual à frente, se puder evitar. A preparação ainda é muito escassa. E as pessoas interessadas nessa área são poucas ainda.
L: Já há algum campo específico multidisciplinar para essas situações?
AC: Existe uma separação ainda muito grande e quem supervisiona a maior parte destas situações são os endocrinologistas e os cirurgiões, com psicólogos pelo meio.
L: Cirurgiões plásticos…
AC: Sim. Há pouca gente em ginecologia que se queira diferenciar nesse tipo de cirurgia. Qualquer um pode, se estiver interessado, fazer estágios nessas áreas. Mas não há muita gente a fazer isso. Que eu saiba não há mesmo ninguém.
L: Queria agora perguntar-te sobre parto. Além dos problemas óbvios que temos neste momento no SNS, fala-se cada vez mais de “violência ginecológica”. O que pensas sobre isto?
AC: Olha, isso é uma agenda feminista que eu não defendo de forma nenhuma. Acho que o termo violência é péssimo. O termo violência em si é péssimo. Se tu disseres desumanização ou, se quiseres, autoritarismo… Mas autoritarismo é diferente de violência. Pode originar violência, mas é diferente. O termo surgiu na América Latina onde de facto as situações de desumanização no parto eram grandes, e alguém se lembrou na OMS de instaurar essa designação e foi aceite. Agora, eu acho que o termo em si não ajuda ninguém. Nem ajuda a melhorar, nem ajuda na queixa. Cria um campo de separação entre os que são atacados e os que atacam. Portanto, a questão fundamental é falar na desumanização do parto. O que é que eu entendo por desumanização? O parecer da mulher não ser tido em conta. E isso é importante em todas as áreas da saúde, não é só no parto. Se eu não quiser que me receitem uma pilula do tipo X, eu tenho de dizer que não quero e porque é que não quero. E a pessoa escolhe uma outra alternativa para mim. O diálogo entre a utente e o técnico de saúde tem de existir de uma maneira educada, de uma maneira civilizada, o médico não pode pensar que sabe tudo. E a mulher também tem de ouvir a opinião do médico ou do enfermeiro. Até agora o volume de partos dos hospitais públicos era grande e na realidade a questão da humanização do parto tem, na melhor das hipóteses, dez anos. Mesmo que houvesse educação e um trato muito simpático do médico, é muito recente a preocupação de explicar as coisas. E tem a ver, de facto, com a necessidade que as utentes tiveram de exigir e se movimentar para que essas coisas fossem reais. E é assim em todas as áreas da prática médica. Portanto, aquilo que é preciso é que as pessoas, de um lado e do outro, saibam dialogar, umas saibam informar e as outras saibam escolher aquilo que querem ou não querem. Agora, se eu não quero ter uma cesariana mas o bebé está em sofrimento, não posso tomar essa opção sozinha. Mas se alguém explicar, acho que nenhuma mulher recusa.
L: Na verdade, os testemunhos maravilhosos de parto humanizado que ouço são “deram-me atenção, explicaram as coisas, eu pude pôr-me de cócoras e andar pelo corredor”
AC: O que é que queres mais?
L: Pois, mas é isso, são os básicos, são coisas que poderiam ser aplicadas facilmente.
AC: Exatamente. E eu acho que o S. João está a melhorar muito o atendimento graças ao da Póvoa. Até porque os hospitais não estão concebidos para pessoas andarem a deambular. Estão concebidos para as pessoas estarem deitadas.
L: A ocuparem só o seu metro quadrado.
AC: Claro. Deambular é uma coisa que exige um espaço. E neste momento, por exemplo, o São João já criou uma área à volta dos blocos de partos que têm uma área onde as pessoas estão com a sua família e estão a ser vigiadas. E o parto humanizado tem que ser treinado, tem que ser preparado antes do parto. É na gravidez que se deve pensar no parto e que se deve considerar aquilo que é possível fazer, quais os limites.
L: Se os médicos também estiverem sobrecarregados, não vão poder dar a mesma atenção a cada parturiente.
AC: Mas os médicos não têm de fazer isso. Quem tem de fazer isso são as enfermeiras. As enfermeiras é que são as profissionais – por mais que os médicos não queiram – que acompanham o parto. E os médicos deveriam só fazer a parte do parto que não é natural. Tudo o resto deviam ser enfermeiras.
L: O médico só deveria vir se fosse uma cesariana ou uma complicação?
AC: Ou se o bebé estivesse um sofrimento, para decidir se se mantinha a via baixa com fórceps ou uma ventosa, ou se era necessário fazer uma cesariana. A questão em Portugal está muito na irregularidade de distribuição de funções dos vários técnicos à nossa disposição. Também podíamos ter nos centros de saúde os enfermeiros a seguir gravidezes de baixo risco. Não há médicos de família mas enfermeiros há. Então é preciso que os enfermeiros comecem a observar e a preparar-se, um enfermeiro especialista em saúde materna e obstétrica tem toda a preparação para seguir uma gravidez de baixo risco. Tem é de saber quando deixa de ser baixo risco.
L: 50 anos depois do 25 de abril, o que é que ainda precisava de uma revolução?
AC: Tanta coisa… A mulher continua a ser considerada ser secundário em muitos locais, trabalho, política, tarefas domésticas não partilhadas mesmo se tem a mesma preparação escolar e curricular que os homens. As pessoas LGBTQI+ continuam a ser discriminadas em tudo e a população ainda tem preconceitos. Por isso, muitas lutas e muitas formações são precisas ainda. Sobretudo acho que não se pode ceder no que foram os passos conquistados.