Dividir para conquistar? O desenlace social como forma de instabilidade 

Há cinquenta anos, Portugal celebrava a sua democracia com eleições a 25 de abril e grandes manifestações no Dia do Trabalhador. Comissões de moradores, associações, sindicatos, partidos, associações de estudantes e outras estruturas sociais que tinham acumulado força durante a ditadura ganhavam uma nova dimensão com a democracia.

Muitas dessas estruturas ainda existem, mas sofreram o golpe brutal do neoliberalismo. Em termos objetivos e subjetivos, a mudança de paradigma social e económico desestruturou completamente o que entendemos por socialização, comunidade e laços sociais. Estamos mais isolados, e por isso somos mais frágeis. O mundo mudou.

É essa frase que lança o mote para este texto de uma forma particularmente agoniante. É verdade que o neoliberalismo colocou em marcha mudanças que transformaram profundamente não só a estrutura económica das sociedades capitalistas avançadas, mas também as suas estruturas sociais e comunitárias. E é verdade também que essas mudanças dilaceraram os laços sociais com o apoio dos smartphones e das redes sociais.

As teorias da modernidade estudaram o fenómeno e deram-lhe diferentes nomes que podiam ser sinónimos. Liquidez, precariedade, aceleração, instabilidade, fragilidade. O ataque de tal forma brutal à base que a superestrutura fica de pé por um fio. Thatcher e Reagan, faróis ocidentais do neoliberalismo, começaram mesmo por atacar o que havia de concreto: o Estado Social.

Thatcher, a quem é atribuída a célebre afirmação de que “não existe tal coisa” como sociedade, seguia essa afirmação com “há homens e mulheres individuais e há famílias”. Dedicaram-se a atacar as seguranças mínimas dos trabalhadores. A saúde, a habitação, a proteção social. Perceberam que quanto mais frágeis estavam, mais fáceis seriam de domar.

Atacaram também os sindicatos, primeira linha de defesa contra os ataques do capitalismo e estruturas sociais plenamente coesas. Conseguiram pulverizar a organização sindical com novas formas de trabalho precárias e explodiram as externalizações, as prestações de serviços, os trabalhos temporários, como agora explodem os trabalhos de plataforma.

A precariedade laboral não fragilizou só sindicatos, fragilizou todas as formas de comunidade. Saltar de trabalho em trabalho significa saltar de casa em casa, de cidade em cidade, de grupo social em grupo social. Equipas com alta rotatividade não criam laços. Vários êxodos rurais, tanto em Portugal como na maior parte dos países ocidentais, ajudaram. As políticas urbanísticas foram sendo desenhadas para colocar as pessoas em gavetas onde dormem à noite e não para criar zonas urbanas dinâmicas, com qualidade e com vida. Enfim, todas as vertentes da organização social foram sendo desenhadas para o indivíduo e não para a comunidade.

A isso somou-se uma narrativa social e política que nem precisa de apresentação. Estamos imersos nela diariamente: a meritocracia, a competição extrema, o individualismo. Um tipo de darwinismo social e económico que se vai tornando cada vez mais mainstream.

Os meios de difusão dessa narrativa é que se tornaram mais sofisticados. Às estruturas sociais e materiais preparadas para incentivar o individualismo e erodir a comunidade, e à narrativa aperfeiçoada para defender essa nova realidade, juntaram-se mundos virtuais desenhados para criar uma ilusão de conexão enquanto fomentam o ódio. Aí está a cereja no topo do bolo.

Desenlace social, polarização cultural

Num mundo desligado fisicamente e ligado digitalmente, onde comportamentos são dados e esses dados são sistematizáveis, analisáveis e manipuláveis, quem está por detrás do algoritmo é rei. A atomização dos laços sociais tornou-nos mais dependentes da comunicação digital, mais desconfiados da comunicação pessoal e mais suscetíveis a desinformação e táticas de manipulação. E os habituais ciclos de avanço e refluxo da luta política podem até começar a ser invertidos.

Por várias razões materiais, sociais e culturais, os Estados Unidos da América e o Brasil fizeram caminhos semelhantes em que a polarização está mais acentuada do que nunca. São quase duas sociedades distintas que vivem no mesmo país, dividido ao meio não só politicamente, mas cultural e socialmente.

A Europa está um pouco mais distante, mas segue a mesma fórmula. Em Portugal, a extrema-direita elegeu 50 deputados. No Reino Unido, o Reform já ultrapassa os Conservadores nas sondagens. Na Alemanha, a AfD ultrapassou o partido social-democrata. Na Itália, a extrema-direita já tem um histórico de governação e na França estão cada vez mais perto de o ter.

O avanço da extrema-direita beneficiou do isolamento social, da precariedade, da insegurança material, da narrativa individualista e das redes sociais. E com estes fatores se afirmou uma reação aguda aos avanços sociais do final da última década.

Certo é que Trump já estava na Casa Branca e Bolsonaro em Brasília, mas a narrativa política da extrema-direita a partir do fim da pandemia não se pode entender senão como uma ofensiva reacionária contra o que foram avanços em termos de debate social e político no campo do feminismo, do movimento LGBTQI+, da justiça climática e do antirracismo.

É através de um movimento que gera fricções, que a extrema-direita se aproveita para abrir uma fenda social. Entre quem acha que estes movimentos “foram longe demais” e quem percebe que os avances no debate social não significam vitórias materiais e a aproximação da igualdade. Ou entre quem acha “que já não se pode dizer nada” e quem acha que ainda há coisas por dizer.

Curiosamente, essas guerras culturais entendem-se melhor através do posicionamento das grandes empresas, de tecnologia, mas não só, face aos temas sociais. Durante o período de avanço, Zuckerberg apoiava a igualdade das mulheres e os direitos LGBTQI+, agora diz que é preciso mais “energia masculina” nas redes sociais. Musk apoiava os Democratas, agora dirige a ofensiva cultural. E a prova de fundo desta mudança é mesmo o segundo mandato de Donald Trump. Mais inconsequente, mais autoritário, mais ao ataque.

Se o neoliberalismo preparou as bases materiais e narrativas para o desenlace social, e a extrema-direita usou as redes sociais para transformar esse desenlace em polarização cultural, que posição política e organizativa cabe à esquerda anticapitalista neste paradigma?

Infelizmente não há balas de prata nem propostas inéditas. Este texto também não faz mira às estrelas. O trabalho a fazer é aquele que tem sido feito e a que as organizações de esquerda sempre se propuseram.

Do bairro ao local de trabalho, da desigualdade de género à liberdade sexual, da cidade ao plano internacional, é procurar novas formas de comunidade e novas respostas. A invenção de alternativas quando nos dizem que elas não existem, uma batalha de David contra Golias para provar que o fim do mundo não é mais fácil de imaginar do que o fim do capitalismo. A colocação concreta daquilo que muita gente sente falta: uma comunidade organizada para lutar por um sonho.