O modelo das esquerdas conservadoras está esgotado. Coloquemos a nossa criatividade radical ao serviço da construção coletiva de um novo imaginário político – é isto o comunismo ácido.
O futuro está cancelado? Mark Fisher refletia em Ghosts of my Life sobre a incapacidade de inovação cultural neste século e sobre os sentimentos de finitude e desesperança no futuro daí resultantes. Não será exagerado dizer que este fenómeno extravasa a esfera da cultura. Também nós, militantes, temos dificuldade em conceber a possibilidade de um futuro diferente, sentindo-nos presos num triste e eterno presente que, quando efetivamente muda, é sempre para pior.
De facto, é difícil sair deste estado de espírito. O período pós-Guerra Fria, marcado pelo fim do ‘socialismo realmente existente’ e pela proclamação do ‘fim da história’, estreitou agressivamente o espaço ideológico para uma alternativa anticapitalista. Ao mesmo tempo, a ofensiva neoliberal colonizou a intersubjetividade e, no plano material, não só reverteu várias conquistas das décadas anteriores, como também pôs em marcha uma violenta ofensiva contra os trabalhadores.
A contradição é evidente: o período da reconstituição acelerada das condições materiais para uma revolução é, ao mesmo tempo, o período do que Fisher chama «realismo capitalista» – a crença generalizada e autoevidente de que não há alternativa ao capitalismo.
Esquerdas conservadoras
A hegemonia neoliberal e a campanha ideológica feroz contra o socialismo feita nas últimas décadas configuraram uma ‘tenaz’ extremamente perniciosa para a esquerda: se for radical é imediatamente estigmatizada e marginalizada; se se modera, é indistinguível dos demais partidos do arco neoliberal e está condenada à irrelevância política.
Se este contexto difícil explica em grande parte o declínio da esquerda, também ela, na forma como lhe tem respondido, tem a sua quota parte de responsabilidade. Vale a pena analisar então estas respostas segundo o ângulo proposto por este tema: «esquerdas conservadoras».
À primeira transformação de uma parte da esquerda podemos chamar capitulação. Ela tem duas faces: a ‘terceira via’ Tony Blair/PS e a ‘esquerda conservadora’ à la Wagenknecht. A primeira é a rendição ao neoliberalismo; a segunda é incorporação da agenda cultural da extrema-direita. Ambas deixam de cumprir quaisquer condições mínimas de uma definição de esquerda e, por isso, não merecerão mais análise.
A segunda mutação, já caraterística de partidos mais radicais, é o abandono de uma agenda claramente antissistema e anticapitalista em favor de uma plataforma mais ou menos social-democrata. As razões desta viragem podem ser duas. Por um lado, a desilusão com os resultados e o autoritarismo de algumas experiências socialistas pode conduzir a uma espécie de nostalgia pelos ‘30 anos dourados’. Por outro lado, a consideração de que, no apogeu do realismo capitalista, esta é a única forma de a esquerda ser palatável para o grande público, ou seja, a social-democracia é o mais ‘radical’ que é possível ser-se.
Assoberbada pela rapidez da desestruturação social provocada pela ofensiva neoliberal, esta esquerda resigna-se a uma postura defensiva de exigências circunscritas com vista a evitar que mais serviços públicos e proteção laboral sejam desmantelados, enquanto vai restando cada vez menos para defender.
A terceira das esquerdas – o ‘superego Leninista’ de Fisher – caracteriza-se pela fé inabalável nos clássicos, pela recusa absoluta de compromissos, cedências e adaptação, e pela convicção cega no seu purismo e na sua centralidade no advento da revolução.
É notavelmente avessa a alianças sociais com forças da mesma área política, pois vê a diversidade à esquerda como degeneração ideológica. Tem preferência por formas de organização mais burocráticas, disciplinadas e centralizadas. Alinha cegamente com as experiências socialistas do passado, mesmo as mais repressivas, sendo incapaz de um olhar crítico. Coincidentemente ou não, exibe um apego a formas ortodoxas de teoria, cujos significantes são repetidos como sinalização de virtude, sem que a isso corresponda necessariamente um programa consequente, ou sequer radical.
Esquerdas esgotadas
A esquerda, hoje e sempre, tem que ser radical. Uma plataforma puramente social-democrata será sempre conservadora, no sentido em que, podendo dar respostas importantes no curto prazo, não comporta perspetivas de mudança estrutural do modo de produção. Assumir estas soluções como o objetivo político último ignora que a conciliação de classes que teve lugar no período da social-democracia só foi possível num contexto muito específico (corrida ao armamento e ameaça do comunismo), sendo, por isso, inevitavelmente precária e provavelmente irrepetível.
O foco exclusivo em propostas imediatistas, argumentadas a partir de uma gramática capitalista, constitui a renúncia à disputa da hegemonia cultural e à luta por alternativas estruturais e sistémicas. Além disso, por não se conseguir dissociar claramente dos restantes atores políticos descredibilizados, nem da ordem política e económica vigente, falha em capitalizar o descontentamento popular e, assim, em gerar apoio e mobilização.
O refúgio na ortodoxia também não é solução. O sectarismo e isolamento caraterístico destas forças políticas, juntamente com a mobilização de modelos de análise redutores e reducionistas que, presos nos ditos ‘clássicos’, não se adaptaram à realidade contemporânea, levam a uma perda vertiginosa de influência social, que nem por isso provoca autocrítica e mudança tal é a confiança na sua virtude e interpretação correta da missão revolucionária.
Isto não é desmerecer os clássicos nem a sua indispensabilidade para a análise do capitalismo e da sua superação. É, sim, uma crítica à sua ritualização e sacralização, à recusa obstinada da atualização teórica e ao desprezo pela diversidade e riqueza da teoria marxista, indispensáveis para um combate efetivo ao capitalismo contemporâneo e à sua plasticidade ao longo do tempo.
As opções até aqui seguidas pelas esquerdas radicais estão esgotadas. No entanto, ao contrário do que nos querem fazer crer, não estamos condenados ao declínio político nem a uma ideia de ‘resistência’ ingénua e romântica. Precisamos urgentemente, sim, de introspeção, mas sobretudo de inovação e criatividade teóricas.
Novas Esquerdas?
Antes de tragicamente tirar a sua própria vida, Mark Fisher deixou-nos a introdução de um livro inacabado: o Comunismo Ácido. Este conceito provocador não é um modelo substantivo de comunismo – e muito menos uma apologia do consumo de drogas. Ele é antes um repto para o abandono do ‘superego leninista’, da nostalgia, da melancolia e da resignação ao futuro cancelado. É uma convocação de energia militante, de convergência de forças sociais progressistas num novo projeto socialista, que nasça da discussão horizontal e da criatividade radical. No fundo, é a criação coletiva, por via da participação alargada e plural, de um novo imaginário político emancipatório.
Como ponto de partida deste projeto, é útil olharmos para formas mais recentes da teoria marxista. Tendo acompanhado a evolução do capitalismo ao longo do tempo, oferecem perspetivas ricas e diversas, mas tantas vezes ignoradas ou desprezadas. A teoria marxista não parou nos anos 30.
O título desta secção não foi escolhido por acaso. É paradoxal para mim como a ‘Nova Esquerda’ fala tão pouco do seu pai e fundador Herbert Marcuse, que foi tão influente quanto esquecido. One-Dimensional Man permanece um antídoto poderoso contra o determinismo histórico que perpassa alguma teoria marxista. Ali, Marcuse explica que a classe trabalhadora, preservando o seu potencial revolucionário, perdeu de facto a consciência revolucionária aquando a sua integração no sistema capitalista nos anos 50 e 60. Os confortos do consumismo e da cultura de massas tornaram o proletariado num agente de preservação do sistema a nível subjetivo, formando-se até uma consciência antirrevolucionária.
Isto leva Marcuse a insistir em obras posteriores na necessidade da formação de uma nova consciência, ou de uma «base biológica para o socialismo», como condições anteriores à superação do capitalismo. A sua desesperança levou-o à procura ávida de novos sujeitos revolucionários, voltando-se para os movimentos feministas, antirracistas e estudantis, os quais apoiou efusivamente. A fé nos novos sujeitos revolucionários, além de poder ser teoricamente equívoca, depressa se revelou precária, especialmente no caso dos estudantes após 1968. Em todo o caso, Marcuse contribuiu de forma decisiva para o reconhecimento de fatores subjetivos e culturais além do ‘materialismo vulgar’, e para o alargamento da luta pela emancipação.
Apesar do seu relativismo e idealismo pronunciados, o pós-estruturalismo e o pós-marxismo fornecem também algumas leituras importantes e ferramentas de combate, nomeadamente a capacidade de desnaturalizar sistemas de conhecimento que consideramos óbvios, expondo a sua arbitrariedade e contingência. Isto aplica-se ao realismo capitalista, mas também a categorias de género, ‘raça’, entre outras. O pós-marxismo também nos alerta para a fragmentação das identidades no contemporâneo, para os desafios que isto coloca à ação coletiva e para a importância da estratégia discursiva. Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, por exemplo, propõem um populismo de esquerda que utilize um conceito de povo plural de forma a agregar subjetividades dispersas em torno de valores comuns.
O período de crise da União Soviética e fim da Guerra Fria trouxe também a proliferação de propostas de modelos alternativos de socialismo que evitassem a burocratização, a centralização e o autoritarismo, na senda do descontentamento de uma parte da esquerda com algumas experiências socialistas. Os modelos de planeamento democrático e descentralizado de Pat Devine ou de Albert e Hahnel, por exemplo, são provas da possibilidade de inovação teórica e referências para a conceção de novos projetos concretos de socialismo.
Por fim, o trabalho de Nancy Fraser é fundamental para evitar o reducionismo de classe e para promover a articulação das lutas emancipatórias numa plataforma socialista. Ao alargar a definição do capitalismo para além de um modo de produção, como uma ordem social, mostra que a discriminação e violência em linhas de género e raciais, assim como a destruição da natureza, são elementos estruturais e constitutivos do capitalismo. Só a transformação radical, não a simples afirmação, poderá proporcionar a emancipação ambicionada por todos estes grupos e movimentos sociais que, integrados por uma conceção alargada de trabalho e classe, são convidados a aliarem-se em torno de um projeto anticapitalista. Fraser responde, assim, aos anseios de todos e todas nós por uma proposta teórica capaz de articular as diferentes lutas numa plataforma coerente e revolucionária – aqui a temos.
Estes são só alguns de muitos exemplos que mostram que fontes de inspiração não faltam. Reativemos a energia militante e criativa, e construamos o comunismo ácido em conjunto.