Do digital para as ruas

A relação laboral tradicional tem sido erodida pela expansão da insegurança, impulsionada pelo aumento do outsourcing, do trabalho temporário e do trabalho independente. O surgimento das plataformas digitais como novos modelos de gestão gerou conflitos sociopolíticos significativos entre diversos atores sociais, económicos e políticos.

Os ataques ao bem-estar dos trabalhadores são uma faca de dois gumes para estas multinacionais, sendo que a perda de estabilidade face à pressão do aumento de trabalhadores nestas empresas, que outrora proporcionavam o acesso a rendimentos considerados pelos próprios como condignos face ao seu esforço, tem vindo a desaparecer.

As plataformas ameaçam que, sendo obrigadas a converter os trabalhadores em funcionários, isso irá resultar em transformações significativas nas suas operações e poderá ser uma ameaça à sua rentabilidade, convencendo os próprios trabalhadores que o seu posto está em risco com essa mudança. Uma ameaça igualmente importante decorre da exposição do trabalhador a uma retórica empresarial que individualiza os trabalhadores e os convida a encarar a atividade económica como um jogo competitivo que oferece pouco espaço para o apoio mútuo ou a solidariedade laboral. A prevalência de tal individualismo empresarial é evidente entre os trabalhadores das plataformas que muitas vezes têm de competir por clientes. Da mesma forma, a expansão das empresas de plataformas pressupõe a existência de um ambiente legal e regulamentar favorável. É por isso que a Uber e outras empresas de plataformas montaram campanhas de lobbying que procuram reconfigurar a legislação laboral e a política reguladora dos governos. É já conhecida a forte investida destas empresas para assegurar a aprovação de leis que favoreçam o seu modelo operacional. As empresas têm frequentemente pressionado os Estados para adotar leis de que negam os direitos dos trabalhadores das plataformas. Estas investidas assemelham-se muito às campanhas em prol do outsourcing e do trabalho temporário, que também procuravam construir infraestruturas jurídicas favoráveis ao setor. Em alguns casos, no entanto, o lobbying das empresas de plataformas sofreu derrotas notáveis, tal como tem sucedido na Europa, e em Portugal em específico, com a aprovação de diretivas e de políticas favoráveis à consagração de contratos quando existem indícios de laboralidade e, recentemente, com decisões dos tribunais em prol desta relação laboral entre estas empresas e os trabalhadores. Ainda assim, apesar de serem vitórias simbólicas, o resultado destas batalhas políticas e jurídicas está longe de ser claro.

Face a estas ofensivas, a resistência é fundamental e a luta é, sempre, coletiva.

Os três principais eixos de ação coletiva para lidar com os desafios enfrentados pelos trabalhadores em plataformas digitais são a via sindical, o cooperativismo de plataforma e a ação direta. A via sindical traz aos trabalhadores que procuram a representação e a negociação coletiva o apoio de sindicatos. Contudo, muitos trabalhadores independentes reivindicam melhorias nas contrapartidas em vez de reconhecimento formal da relação laboral. Por outro lado, o cooperativismo de plataforma propõe uma abordagem em que os próprios trabalhadores se tornam donos de plataformas, permitindo-lhes regular coletivamente os termos e condições de trabalho, como são exemplos a Stocksy, a Green Taxi e a Mensakas. Por fim, a ação direta é caraterizada por movimentos espontâneos e orgânicos, onde os trabalhadores realizam greves, protestos e outras formas de resistência direta para reivindicar por melhores condições de trabalho e pressionar por mudanças nas plataformas. Um exemplo recente foram as paralisações de estafetas e motoristas em resposta às baixas remunerações praticadas pelas plataformas. Estes três eixos representam diferentes estratégias de mobilização para enfrentar as questões relacionadas com os direitos e as condições de trabalho destas pessoas.

Além dos eixos de ação coletiva mencionados, é fundamental destacar a importância da criação de comunidades entre os trabalhadores das plataformas digitais. Frequentemente, estas comunidades formam-se e fortalecem-se através das redes sociais, grupos de WhatsApp e outras plataformas online, bem como por meio de conexões pessoais e redes de sociabilidade offline. Essas comunidades desempenham um papel fundamental ao oferecer suporte emocional, compartilhar informações e estratégias, e promover a solidariedade entre os trabalhadores. Num contexto onde a retórica empresarial incentiva o individualismo e a competição, as comunidades proporcionam o contrapeso necessário, encorajando a cooperação e a organização coletiva para resistir às pressões e desafios impostos pela hegemonia neoliberal. Ao se unirem e se apoiarem mutuamente, os trabalhadores das plataformas podem fortalecer a sua posição e capacidade de negociação.

A força da luta pela classificação laboral de muitas destas pessoas como trabalhadores dependentes reside na necessidade de garantir o acesso à proteção social por parte de todas e de todos, independentemente do seu estatuto jurídico. Este tem sido um ponto central noutras lutas contra as plataformas em vários países, destacando-se a importância de promover a solidariedade e a criação de comunidades. Reconhecer e fortalecer estas comunidades é essencial para combater as discrepâncias entre as expectativas das diferentes partes interessadas e enfrentar o dogmatismo em relação à não-contratualização.

A convivência em comunidade, a partilha de experiências e dificuldades, provocam a erupção de uma consciência coletiva dos mesmos problemas, dos mesmos desafios. Uma classe que parte de baixo, como diria E.P. Thompson. Transcende a categorização lógica, racional, e torna-se num sujeito histórico concreto. A classe social – e a consciência de classe – forma-se, assim, socialmente, através da partilha intersubjetiva de códigos de leitura da situação vivida, da posição social e económica, dos antagonistas políticos.

Ao se unirem e organizarem coletivamente, os trabalhadores das plataformas podem reforçar sua capacidade de reivindicação por direitos e condições dignas de trabalho, resistindo à exploração e à precariedade incentivadas pelas práticas das empresas e promovendo uma agenda de trabalho digno e do acesso à proteção social.

Neste momento, surgem várias questões. Será que as recentes lutas travadas pelos estafetas, que prefiguram casos de ação direta, irão aumentar? Será que as ações laborais de grupos organizados de trabalhadores das plataformas fazem parte de uma mudança no paradigma de organização? Será a consagração jurídica destes trabalhadores uma vitória face à revolução digital que está a reformular o capitalismo contemporâneo? As respostas a estas questões serão dadas nas ruas, na capacidade destes grupos se organizarem e criarem uma consciência de si próprios enquanto uma comunidade. Solidários entre si. Esquecendo o sonho de um empreendedorismo individualista e falacioso que se embrenha nos corpos explorados, oprimidos e marginalizados.