Do tribunal à praça pública: uma faca de dois gumes chamada punição

“À justiça o que é da justiça” é uma frase que merece particular atenção no contexto em que vivemos. Suscita algum sentimento de desresponsabilização perante a banalização do crime ou da transgressão, algum afastamento da matéria penal para um reino judicial que nos é muitas vezes território desconhecido. É também um palco particularmente suscetível à atração de holofotes e câmaras, não só pela sua dimensão potencialmente escandalosa mas também pelo sentimento de justiça ou injustiça que nos impõe.

            É natural que esse sentimento particular extravase para o debate público. Não é de hoje nem de agora – infelizmente não temos registos da reação de Atenas ao julgamento de Sócrates, mas com certeza que o veredito não terá passado ao lado da praça pública. Todos temos noções do que é justo ou injusto e temos até um gosto saudável em debatê-las, mas as redes sociais permitiram que movimentos em torno de sentimentos generalizados de injustiça dessem expressão a algum tipo de punição.

            Esta punição é um processo orgânico à massificação da comunicação digital. Há a perceção de uma injustiça, de um perpetrador e de um injustiçado e logo uma multitude de vozes se levanta conjuntamente em reclamação de justiça. Mediante a pressão posta sobre um acusado, a sua vida pessoal, o seu emprego, as suas amizades, a sua credibilidade, tudo isto é posto em cheque sem ser preciso sequer recorrer ao tribunal. O que é da justiça também é da praça pública.

            O movimento #MeToo é um dos exemplos mais evidentes desta afirmação. Casos de assédio e agressão sexual – sobre os quais a justiça tradicional nada tinha sabido ou nada tinha feito – foram expostos de uma forma que não só obrigou a justiça tradicional a lidar com eles mas também expôs culturas institucionais predatoriais e obrigou à criação de mecanismos para lidar com elas. Também normalizou de certa forma a punição no espaço público: os despedimentos imediatos, a ostracização, o distanciamento.

            Por isso precisamos de ter cuidado com a expansão da punição ao espaço público. É um processo ambíguo. Certamente tem a vantagem de poder contornar algumas das limitações do sistema penal, virar o jogo a quem até agora tem saído impune. Mas há um custo associado: a punição no espaço público não é um sistema e não tem regras. Não se rege pelo princípio da presunção da inocência, não codifica e taxonomiza crimes e punições, não tem jurisprudência ou estruturas dedicadas ao julgamento.É uma ocorrência espontânea e orgânica que não conseguimos controlar.

            Pelas formas como se tem manifestado, esta expansão apresenta três principais desafios. O primeiro é imposto pela sua inevitabilidade: fruto do imediatismo e da digitalização da comunicação, a normalização da punição no espaço público veio para ficar. O que era antes a exceção tornar-se-á a norma e o sistema penal terá dificuldade em adaptar-se ao ritmo frenético e imediato da aplicação. Mesmo que as pessoas acusadas sejam mais tarde ilibadas em tribunal, o dano a nível de imagem pública, carreira e vida pessoal estará feito e os juízes e juízas nada poderão fazer sobre isso.

            O segundo desafio é que embora a punição na praça pública possa ser útil a ultrapassar as lacunas do sistema penal, ela pode facilmente virar-se contra nós. Aliás, historicamente ela tem sido usada à escala das pequenas comunidades para oprimir. A ostracização por atividades ‘criminosas’ como o aborto ou o adultério eram práticas comuns das comunidades puritanas. Qualquer punição que advenha da hegemonia de uma opinião pública estará sempre cativa dos caprichos dessa mesma opinião.

            O último desafio é a vulgarização da punição na era da pós-verdade. O próprio sistema penal já tem dificuldades em combater a desinformação e em fazer sentido de factos contraditórios e neste domínio também a opinião pública costuma sair a perder. O exemplo mais caricato talvez seja o do julgamento Depp v Heard. Duas estrelas de cinema numa relação abusiva, ambas marcadas tanto de vítimas como de agressoras, cuja reputação a opinião pública completamente dizimou sem pensar duas vezes. É o cúmulo do enlameamento que produz a resposta moralista à publicidade judicial.

            Repensar a forma como usamos a opinião pública para punir não é o mesmo que defender agressores. Quando pensamos que tipo de justiça queremos na nossa sociedade, é preciso fazer uma distinção clara entre um sistema que procura reabilitar e uma forma de punição que opera como uma política de terra queimada e que não espera por vereditos antes de exigir ação imediata sobre acusados.            O sistema penal que temos é imperfeito. Reproduz relações raciais, de classe, de género e parece ser particularmente vulnerável ao capital. É o purgatório burocrático e despersonalizado de Camus. Procura muitas vezes a punição em vez da reabilitação. Mas a alternativa pela qual nos batemos não deve ser mais punição fora desse sistema. Deve precisamente ser a afirmação de uma forma mais humana de procurar a justiça e a capacidade de lidar com a publicidade judicial, de lidar com o imediatismo e poder dar à justiça o tempo de que ela precisa.