Duas questões contra o punitivismo

Este dossier dedica-se a debater – e a combater – o punitivismo, ou seja, a resposta simplista que consiste em criar leis-panfleto ou ameaças penais para crimes já previstos ou para outras formas desses mesmos delitos, sugerindo que isso os evita ou castiga. Por isso, em outros artigos distinguimos o que deve ser o reforço de direitos (o que levou, por exemplo, à exigência de que a violência de género ou a violação sejam crimes públicos) da presunção de que, se um certo crime passar a ser punido com 25 em vez de 20 anos de prisão isso terá algum efeito no seu bloqueio, o que a experiência desmente. Nesse sentido, aqui discuto a notável entrevista de Angela Davis e de Gina Dent ao Público (20 de novembro de 2022). Sobre elas pouco acrescentarei ao que a leitora ou o leitor já sabem, são militantes com histórias heróicas de luta e cuja reflexão precisa de ser ouvida.

Primeira nota: o punitivismo é incapaz

Angela e Gina explicam que, na sua opinião, criminalizar discursos racistas é inútil: “Eu costumava ficar impressionada com o facto de certas manifestações de racismo terem sido criminalizadas na Europa (…). Mas se olharmos agora para a França, podemo-nos perguntar se o facto de ter sido criminalizado trouxe alguma mudança. Eu acho que, provavelmente, não”. Não, dado que a criminalização de “expressões discriminatórias (…) deixa a estrutura intacta” e, por isso, o racismo deve ser combatido de outras formas, “a criminalização nunca funcionou realmente para nada”. Segundo elas, embora não proponham descriminalizar as formas atualmente puníveis de racismo, a “reabilitação” não é favorecida pela instituição prisional e, portanto, esta não reduz o racismo. Pode-se acrescentar que, além disso, leis que se concentrem sobre formas de expressão são frequentemente inaplicáveis, tanto por ser difícil a prova, quanto por haver um conflito com o conceito de liberdade de expressão, que os tribunais tendem a interpretar no sentido mais amplo.

            Assim sendo, correr atrás de acontecimentos e responder-lhes com novas penas ou com agravamento de penas pode ser um foguete de pouco préstimo. No entanto, a escolha deste exemplo é limitativa e nem sempre vale a mesma resposta.

Segunda nota: pode-se abolir as prisões?

Quando estiveram em Portugal, as duas militantes apresentaram o seu livro recente sobre o abolicionismo das prisões, o tema da entrevista. Têm razões fortes para a sua crítica ao sistema prisional, em particular nos EUA, e alguns destes traços são universais (Portugal é o segundo país da UE com maior densidade de presos por habitantes e a média das penas é superior à europeia). Trata-se, afirmam elas, de um sistema concentracionário que não se ocupa da reabilitação, é racista e promove a discriminação e cujo funcionamento cria novos problemas sociais. Para responder a esta estrutura, promovem a discussão sobre alternativas futuras e ninguém tem feito mais por abrir este espaço de pensamento.

            No entanto, há três dificuldades com as suas propostas. A primeira verificou-se quando as duas visitaram a mãe de um jovem negro morto em 2021 no EPL. A mãe pediu-lhes apoio para que houvesse justiça para o filho, estando convencida de que terá sido assassinado e de que os culpados devem ser punidos. Depois de falarem com ela, responderam ao Público que “não se trata nunca de ignorar estes danos particulares, este tipo de casos. É estar com as pessoas que foram prejudicadas”. O mesmo se dirá da resposta às agressões na esquadra da Cova da Moura, que levou à condenação de oito polícias por sequestro, agressão e falso testemunho – em qualquer destes casos as famílias e amigos das vítimas pedem a punição dos agressores. Perguntam então elas: e pode haver outra punição para crimes destes que não seja o encarceramento?

            A resposta que nos dão é a “justiça restaurativa”, com dois exemplos. O primeiro é “o método da verdade e reconciliação na África do Sul”, como “o caso de uma mulher a quem um polícia havia matado o filho e o marido durante o regime do apartheid na África do Sul. Perante a Comissão Verdade e Reconciliação, ela disse: ‘Destruíste tudo o que eu amava na minha vida e, por isso, o que eu gostava era que me visitasses de duas em duas semanas’. Ela estava a reconhecer que não a ia ajudar em nada pôr na prisão aquele terrível polícia branco. É difícil imaginar que ela não tenha inicialmente pensado em retaliação”. O segundo exemplo é ainda mais exigente: “Estou também a pensar no caso de Linda Biehl e do marido que acabaram por adotar um dos rapazes que estiveram envolvidos no assassinato da sua filha na África do Sul”. Admita-se, e não conheço nenhum destes dramas, que estas respostas serviram para aquelas famílias. Mas o que se deve perguntar é até que ponto podem ser generalizadas e se pode haver um sistema de justiça que substitua formas de punição por este tipo de reconciliações como método comum. Não é viável e os mesmos movimentos que discutem estas alternativas pediram punições quando George Floyd foi assassinado. Aqueles métodos não serviam.

            Em segundo lugar, dizem Angela e Gina: devemos “garantir que as respostas também nos vão permitir construir o tipo de cultura em que queremos viver para não sentirmos necessidade do encarceramento, para que não dependamos da violência do Estado”. Esperam assim a substituição gradual do sistema policial por vigilância comunitária auto-organizada e cuidados mútuos, sem o Estado. A proposta tem um argumento forte, o envolvimento cidadão poderia mudar a vida dos bairros e proteger populações contra abusos. Mas pode dispensar o Estado? Pode a auto-organização local substituir a existência de uma força nacional, qualquer que seja o seu nome, com capacidade de investigação quando há um crime e com critérios uniformes de atuação? Não vejo como, caso contrário teríamos organizações milicianas com regras locais e potencialmente algumas populações desprotegidas. A alternativa a uma polícia racista ou com atuação ilegal só pode ser, creio, um sistema de proteção igual para toda a gente e não racista. Isso só pode ser o Estado.

            A terceira objeção é que esta abordagem só trata casos individuais e restringe a violência a uma atitude que poderia ser corrigida, uma vez cometida. Se isso evitaria outros casos do mesmo tipo, é mais obscuro. Mas ao que decerto não responde é à luta de classes. Ora, mesmo numa sociedade estruturada para reduzir a divisão em classes e outras opressões, prevenir a violência implica um sistema coercivo. Numa sociedade baseada na lei (e não na discricionaridade), lei igual para toda a gente (e não classista e discriminatória) e com formas de aplicação transparentes e verificáveis, ou seja, numa democracia, que portanto não seja uma autocracia, a contradição social continua a gerar conflitos que não são patologias individuais, mas sim resultado de interesses. Nenhuma estratégia de reconciliação individual ou familiar evita estas guerras de interesses. Ou seja, se perguntamos se podemos dispensar o Estado como forma de garantir a igualdade, a minha resposta, ao contrário da delas, é que não. Por isso, prefiro a sua lógica de criação de regras de proteção social, de alteração de normas penais para evitar abusos, do fim da pena de morte ou prisão perpétua onde existe, do uso de intermediação restaurativa onde seja possível, de distinção de tipologias de castigos, de punição com regras reconhecíveis para os crimes – do que uma promessa que não pode ser cumprida, a ideia de vivermos sem alguma forma de Estado, ou de poder coletivo subordinado à democracia.