É o choque sobre a ética que justifica a convocação de eleições? Não é. Naturalmente, quem lê esta revista, se não toda a gente, sentirá que há de facto uma dimensão ética nesta crise: há coisas que não se fazem (como um primeiro-ministro ter na sua casa a sua empresa a prestar serviços a outras empresas que podem beneficiar de decisões do governo). Mas essa questão só importa para a decisão pública por ser uma violação política do dever do cargo. Dizer que o primeiro-ministro se comportou mal (ou bem) é reduzir este episódio a uma floresta de interpretações e a uma noite em que todos os gatos são pardos. Não, o que Montenegro fez foi muito mais do que se comportar mal (ou bem, dirão os seus apoiantes) pois rompeu com uma obrigação elementar imposta pelo seu cargo. E deve ser punido por isso, através de uma decisão política – as eleições que quis convocar – e não por um discurso etéreo sobre o pecado ou o bem e o mal. Estas eleições não são para decidir sobre uma questão ética. São para escolher um parlamento e um governo e para parar os interesses económicos que o PSD quis por ao leme do país. Não ponham na parede que “é a ética, estúpido”. Escrevam antes “é a transparência que nos protege dos interesses económicos obscuros, estúpido”.
É a clareza que nos defende do regime de instabilidade que a direita instalou, a partir da sua política baseada no medo da economia e da guerra e nas escapatórias políticas que correspondem a este truque.
A explicação de Marcelo
Para justificar a crise que levou à convocação de eleições, o Presidente explicou que se trata de um conflito sobre ética e moralidade. Vale a pena ler o detalhe deste argumento. Segundo Marcelo, “Do lado do Governo, foi afirmado que o Primeiro-Ministro, na sua atividade patrimonial passada e presente, havia agido sempre no respeito da lei, da legitimidade política e da ética ou moralidade, ou seja, da transparência e da não confusão entre política e interesses económicos. Do lado das oposições, foi contraposto que tinha havido ou podia ter havido desrespeito da lei, da legitimidade política e da ética ou moralidade, ou seja, confusão entre política e interesses económicos”. Continua ele: “Este choque, não apenas legal, nem político, mas sobretudo de juízo ético ou moral sobre uma pessoa e sua confiabilidade, o Primeiro-Ministro, suscitou uma questão nova, é que todos os esforços de entendimento, mesmo mínimo, se revelaram impossíveis. Porquê? Porque, para uns, com os factos invocados e os esclarecimentos dados, a confiança ética ou moral era óbvia. Porque, para outros, com os mesmos factos invocados e os esclarecimentos dados, a desconfiança moral ou política é que era óbvia.”.
Este argumento é um truque. Procura basear a confiança, em última análise, num juízo “ético ou moral”. Ou seja, subjetivo e interpretável. Daí a narrativa sobre o que uns pensam e outros contrapõem; é uma lógica discursiva que está em causa, segundo Marcelo. Segundo o Presidente, a confiança depende da “ética e moral” e cada qual tomará a que quer e quanto quiser. Deste modo, é uma forma de isentar o PSD e o seu líder da obrigação estrita de cumprir regras políticas e legais; não seria por violar os princípios que obrigam a sua ação enquanto primeiro-ministro que Montenegro é posto em causa, mas por haver quem dele discorde e tenha outra interpretação da ética e da moral. E, como é bom de ver, essas interpretações são inexpugnáveis: eu tenho a minha visão da ética e da moral e, contudo, não devo nem posso impô-la a ti, ambos temos legitimidade para pensar como pensamos. Se assim fosse, vale tudo e Montenegro só fez pela vida.
A ética não decide a política
Se, desde os filósofos gregos, a moral é considerada a delimitação do certo e do errado, e, portanto, da ação que devemos seguir, ao passo que a ética escolhe entre o bem e o mal, é a primeira que delimita normas. Mas são as minhas normas, é a minha moral. Se a procurasse impor como fonte de legitimidade, ou como princípio de lei, substituiria a política (em que escolhemos caminhos para a nossa comunidade por decisão ou votação e independentemente das normas morais auto-atribuídas por cada pessoa) por uma forma de totalitarismo (tu tens que te submeter ao que eu considero ser a moral adequada). A política não é uma moralidade, mesmo que as pessoas intervenientes sigam as normas morais ou éticas que consideram corretas; devem fazê-lo e ser até avaliadas por isso e pela opinião dos outros, mas o que determina o que nos relaciona são regras comuns e legitimadas por toda a gente, isso é a democracia. A moral é substituída pela política como forma de decisão na república. Se fosse a moral de um ou de alguns a impor as decisões, teríamos uma ditadura ou uma teocracia.
Acresce que a moral e a ética se formam nos contextos históricos e na aprendizagem social. Num debate antigo, Jean Jacques Rousseau procurou resolver esta questão sublinhando o efeito perverso das instituições (o mal) sobre o indivíduo (que seria bom). Falando dos homens, e aliás só deles, as mulheres pouco significavam no seu “Discurso sobre a Desigualdade”, escreveu ele que “Os homens são maus. Uma triste e contínua experiência dispensa-nos a prova. No entanto, o homem é naturalmente bom, como creio ter demonstrado. Sendo assim, como explicar uma tamanha depravação, a não ser através das mudanças que se deram na sua constituição, dos progressos que fez e dos conhecimentos que adquiriu?”[1]. Ou seja, as instituições, como a propriedade da terra, terão conduzido ao conflito e perturbado a existência e cooperação cordata entre os humanos. Neste contexto, a moral teria sido formatada pela experiência e ter-nos-ia tornado maus (nem Marcelo nem Montenegro se lembraram desta justificação). Tudo isto é uma simplificação discutível, embora aponte algo óbvio: o que a humanidade pensa sobre as suas regras vai mudando ao longo do tempo.
Concluo então que nem uma coisa nem outra: nem a moral e ética podem ser usadas como pressuposto da política, nem se deve admitir que a política conspurca inevitavelmente a bondade intrínseca. Tudo depende da luta de classes, da evolução histórica, da experiência política. O poder do capital procura impor a naturalização dos interesses particulares e até da seleção dos governantes segundo a sua fidelidade ao favorecimento estrutural e garantido desses interesses – eles são os funcionários do regime de acumulação. E foi o que se constatou em Portugal nesta crise. Por isso mesmo, só a política pode recuperar o bem comum e só a disputa social e ideológica pode reaver o que é de toda a gente e colocá-lo ao serviço da democracia.
É assim que vamos para eleições, não para pedir ao povo para fazer um juízo ético ou moral de um caso mesquinho, no que se criaria um deserto de debates e um nevoeiro de interpretações, mas para ter a energia para vencer a cumplicidade entre o governo e as oligarquias, para derrubar a direita, para garantir as condições fundamentais da habitação, saúde, educação, transição ambiental, igualdade e combate à exploração do trabalho. Nesse sentido, é a escolha da responsabilidade social contra a instabilidade.
[1] Rosseau, J. J. (2021) [1755]. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Penguin (p. 121).