E assim se desviam as atenções

Recentemente, como já nos tem habituado, Passos Coelho apareceu numa manhã de nevoeiro, no seu clássico estilo sebastianista – pronto para salvar a direita portuguesa e ser o seu “compasso moral”, ao comparecer numa apresentação do livro “Identidade e Família”. Este, que é protagonizado por setores ultraconservadores da sua família política para além de propagar chavões machistas e homofóbicos, reduzindo a família à concepção de “um homem, uma mulher e filhos” ou ao defender que as mulheres devem ser reduzidas ao seu papel maternal, tenta ainda debater trazer ao debate a origem ou significado de família atualmente.

Os autores, logo na introdução do livro, tentam convencer os leitores de que em “todas as sociedades humanas, a família é a única natural, universal e intemporal. Nasceu com o Homem e existe antes do Estado. Não foi criada cientificamente, não resulta de um qualquer legado jurídico, não foi imposta por ato administrativo, não germinou fruto de uma qualquer ideologia, não é o resultado de meras circunstâncias ou contingências históricas.”  

Nós, à esquerda, sabemos que isso não passa de um mito: a concepção de família de natural não tem nada e foi extremamente influenciada pelo capitalismo, como tão bem Engels nos relembra no seu livro A Origem da Família e do Estado Privado. Mas também temos a obrigação de saber que o que os proponentes deste debate estão a sugerir não é um debate teórico, mas sim um confronto mediático que nos retira a centralidade do debate do dia-a-dia de quem trabalha e passa os dias a construir cidades pr’ós outros. 

Desengane-se quem acha que o problema central da “típica” família portuguesa é esta tentativa de imposição de uma suposta “sovietização do ensino português”. O problema principal das famílias portuguesas são os baixos salários, a falta de condições laborais que permitam compatibilizar o tempo de descanso e de lazer com o seu trabalho, é a degradação das condições estruturais da escola pública, é o custo da habitação. A direita sabe disso e sabe também que não tem resposta a esses anseios: decide então importar guerras culturais, onde se grita em todos os momentos possíveis que há uma luta civilizacional a enfrentar e onde se rasgam vestes de modo a libertar-nos do socialismo da escola pública. Assim se desviam as atenções: não se fala das opções políticas do futuro Governo, nem sequer dos casos que têm abalado o governo dia após dia – desde a indemnização indevida a Cristina Dias, as buscas ao gabinete de Miguel Pinto Luz ao choque fiscal que na verdade é um “shot” fiscal. 

Temos certamente a responsabilidade de trazer o debate de volta para as questões centrais de quem precisa de respostas imediatas e lutar contra esta maré mediática que nos quer fazer entrar em guerras inexistentes. Mas não nos podemos iludir: esta estratégia utilizada pela direita será algo que marcará o nosso futuro ritmo diário. Da mesma forma que começamos a ouvir ventos de um livro que junta diversas personalidades de direita que se opõe ao que conhecemos enquanto legado de Abril, iremos começar a sentir cada vez mais o espaço mediático tomado de assalto por quem vive no saudosismo constante. A esquerda será tanto mais forte quanto for a sua capacidade de recentrar o debate em si e nas questões materiais de quem quase paga por respirar mas também quando for capaz de, em conjunto com esse discurso, for capaz de propor uma contra-agenda em união de resposta a quem nos quer colocar em dias mais sombrios. 

Será certamente difícil criar uma resposta a um debate que parece querer desviar atenções sem não perder o nosso rumo – mas deixar o espaço público sem essa resposta forte e que junte todas as causas pelas quais nos movemos e por Abril, será um erro que o futuro nos demonstrará ser caro.