
Editorial: Não aceitamos a política refém
Começa um novo ano com um orçamento que cheira a passado. Grandes decisões, sejam sobre direitos do trabalho, habitação ou alterações climáticas, foram remetidas para não-decisões na primeira versão da proposta de lei. Seja na forma de relatórios ou de comissões de avaliação das medidas, já conhecemos o truque para adiar e não fazer.
Para garantir o excedente orçamental de Centeno e a injeção de (pelo menos) 600 milhões no Novo Banco, o governo parece só encontrar uma solução para as prioridades do país. Mais um “estudo” e que se juntem “especialistas” para discutir a validade das reivindicações dos portugueses. É a tecnocracia ao poder da austeridade. Não aceitamos a política refém.
A política refém das finanças, dos estudos e dos tecnocratas é o deserto das esperanças sociais e, por isso, alimento da extrema-direita e da abstenção. É também o sustento das oligarquias que se entretêm no regabofe dos privilégios de uma elite que nada tem a oferecer à classe trabalhadora. A política refém é a política sem política e não nos serve.
Um orçamento de Estado constrói-se na relação de forças concreta e nas disputas sociais. Obviamente que a sua construção é um passo-a-passo que anda por vários gabinetes ministeriais, reuniões sem fim, negociações mais ou menos obscuras, birras de ministros e confrontos entre correntes internas, dentro e fora do Governo. Mas há mais. Fora dos gabinetes, dos corredores do poder e do parlamento, das reuniões de conselhos europeus e de eurogrupos, há política.
Um orçamento de Estado disputa-se também na organização à esquerda, nas ruas, nas escolas e onde quer que as pessoas estejam. Na verdade, um orçamento de Estado é para as pessoas. Quem trabalha tem opiniões sobre o orçamento e sabemos que não passam por defender um excedente orçamental à custa do Serviço Nacional de Saúde. A opinião dos funcionários públicos não passa por defender o poupar de décimas do défice à custa do congelamento do seu salário. Conta a opinião de todos nós, que preferimos os direitos sociais à exibição de um excedente orçamental, porque sabemos que temos de investir intensamente na combate e adaptação às alterações climáticas.
Um género de regresso ao passado, qual viagem no tempo no avião que trouxe a troika a Portugal, traz-nos a folha de excel novamente a sobrepôr-se à vida das pessoas. Já temos saudades do futuro que põe os direitos à frente do excel neoliberal bem comportado. Excedente orçamental significa ter um SNS frágil, continuar com salários baixos e contribui para agravar o atraso na solução climática e na reconversão das indústrias e dos transportes.
Recusamos o excedente orçamental porque propomos algo em troca. O investimento no que interessa a todos e a cada uma de nós. Nos serviços públicos, nos direitos, na economia produtiva, na transição ecológica. Mas não basta propô-lo. Precisamos levar esta disputa política a todo o lado. Virar o disco, porque é da hegemonia das ideias que defendemos depende o futuro de todos e todas. Uma política que responde à urgência climática e combate a extrema-direita tem de responder à vida concreta das pessoas.