Saio do prédio onde vivo e bastam-me poucos passos para encontrar uma mercearia, uma pastelaria e até um restaurante com os produtos da minha terra. Este bairro é português, mas não fica em Portugal. Há quem tenha chegado aqui nos anos 1960, escapando à pobreza, à ditadura e à sua expressão mais violenta, a guerra colonial. Há também quem tenha vindo na crise de 2008, escapando aos efeitos da austeridade. Existimos nós, que enquanto pudemos, resistimos aos contratos precários, aos baixos salários, à falta de oportunidades. Aqui, vamos tecendo, retalho a retalho, vidas entre a nova realidade e a que ficou para trás.
Como escrever um texto sobre emigração portuguesa que não seja fatalista? Nos jornais portugueses, não faltam as cartas abertas e as crónicas de emigração. Repetem-se os lugares comuns, as caricaturas dos regressos em agosto e as referências à saudade do ano inteiro. A maior vaga de emigração portuguesa decorreu entre 1950 e 1974, anos em que saíram mais de 1.8 milhões de portugueses. Foi consequência direta do regime fascista e colonial. Já em democracia, seguiu-se a emigração de >290 mil portugueses entre 1975 e 1985, com muito menos expressão. Só mais tarde, entre 2011 a 2015, sob a sombra das políticas de austeridade evitáveis, emigraram 586 mil portugueses, 239 mil dos quais, permanentes.
Para perceber as razões pelas quais se sai do país, é preciso olhar para quem fica. Se o fenómeno da não-migração em contextos climáticos extremos tem recentemente acolhido interesse nas ciências sociais, porque não estudá-lo noutros contextos? Por norma, a não migração pressupõe um esforço de adaptação, assente em redes informais de solidariedade. Assim foi durante os duros anos da troika: a sociedade providencial informal reforçou-se em reação ao desemprego, à precariedade e aos cortes na proteção social formal. Outros, saíram. Em 2021, felizmente, os números da emigração permanente já eram menos de metade do que os de 2013.
Recentemente, a Fundação Francisco Manuel dos Santos dedicou-se a estudar os 2,2 milhões de jovens que ficam. Consideraram-se jovens os portugueses entre os 15 e os 34 anos residentes em Portugal. Concluiu-se que 50% dos jovens trabalha e recebe uma remuneração. Destes, 86% são trabalhadores por conta de outrem, ainda que 51% tenha um vínculo contratual instável. Estimou-se que 72 % aufere rendimentos que não ultrapassam os 950€ líquidos por mês. Segundo o mesmo estudo, 57% dos jovens vive com familiares, enquanto 9% partilha casa com amigos ou desconhecidos, ou vive numa residência universitária. “Os meus amigos eram para vir, mas emigraram”, lia-se num cartaz das manifestações pela habitação que há poucas semanas encheram as ruas de 24 cidades portuguesas. E ao ir, perdemos voz e acesso a formas de organização política.
Hoje, há novas estórias na história da emigração portuguesa. Falar de emigração portuguesa é falar de trabalhadores. Até aos censos de 2011, só 11% da emigração portuguesa era licenciada. Agora, como reflexo do aumento geral das qualificações dos portugueses, também a emigração portuguesa se tem profissionalizado, tornando-se mais estratégica, temporária e circular. Ainda assim, nos sucessivos Relatórios da Emigração, refere-se que emigramos quase sempre para países com um Índice de Desenvolvimento Humano superior ao português. A emigração portuguesa (ainda) é política. Contudo, a emigração já não se faz só pela falta de opções, mas porque sabemos que existem melhores opções. Mas desenganemo-nos: continuamos a viver num país de indicadores semiperiféricos e continuamos a ter emigração forçada – ou talvez, constrangida.
A emigração, como a luta política, tem como fator subjacente a procura por melhores condições de vida. O artigo 9º, alínea d) da Constituição da República Portuguesa, referente às tarefas fundamentais do Estado, fala sobre a promoção do “bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real”, bem como da efetivação dos “direitos económicos, sociais, culturais e ambientais”. Falta cumpri-los. Em 2017, o saldo migratório português voltou a ser positivo pela primeira vez em seis anos. Ao fenómeno da imigração, devemos responder com naturalidade, com vias legais e seguras e um acolhimento digno e solidário. Ao desafio da emigração, refletir sobre o duplo exílio a que a diáspora está sujeita: o físico e o do abandono institucional. Com quem vai, com quem chega e com quem fica, é preciso repensar a mobilidade humana e o seu potencial de transformação social.