
Erosão dos salários reais: inflação e escolhas políticas
Madalena Figueira
Depois de um longo período deflacionista, as economias passaram a ser confrontadas com uma forte pressão inflaccionista, essencialmente movida pelos preços da energia e das matérias-primas. Portugal não é exceção e apresenta níveis de inflação que não se verificavam desde 1992.
Os últimos dados do Eurostat mostram que em julho Portugal apresentava um nível de inflação anual de 9,4%, estando entre a média da Zona Euro (8,6%) e da União Europeia (9,8%). Utilizam o Índice Harmonizado de Preços no Consumidor (IHPC), que se distingue do IPC por incluir as despesas realizadas por não-residentes, permitindo comparar a realidade de diferentes países.
A agenda mediática e o debate institucional têm sido marcados pelo combate à inflação quase como agenda categórica. Prova disso mesmo foi a alteração da política monetária do BCE. No entanto, é necessário salientar a dimensão classista desta discussão. A variação do nível generalizado dos preços tem um efeito profundamente redistributivo e qualquer atuação política tem que o ter em consideração.
Primeiro, a variação do preço dos bens não é homogénea, nem o são os padrões de consumo de todos os grupos sociais. O INE apontou recentemente que as categorias que mais contribuem para o nível elevado de inflação em Portugal são: habitação, água, eletricidade, gás e outros combustíveis (16,6%), hotéis e restaurantes (14,8%), bens alimentares e bebidas não alcoólicas (13,9%) e transportes (12,8%).
Simultaneamente, baseando-se no último Inquérito às Despesas das Famílias de 2015/16 do INE, um estudo de abril analisou o peso que despesas essenciais assumem nos rendimentos dos diferentes agregados familiares. As conclusões são relativamente intuitivas, mas vale a pena sublinhar a sua escala: enquanto os produtos alimentares representam 19,2% da despesa das famílias mais pobres, para as mais ricas representam 11%; já as rendas da habitação pesam 6,9 vezes mais para as primeiras, e a eletricidade e gás 1,6 vezes.
Segundo, os agentes económicos auferem tipos de rendimento distintos (salários, lucros, juros e rendas) aos quais estão associados poderes diferentes nas relações sociais, determinando a sua capacidade de ajustamento. Será mais fácil a um senhorio subir a renda que cobra aos seus inquilinos do que um trabalhador ver o seu salário renegociado. As notícias têm mostrado isso mesmo.
As rendas em Lisboa registaram o maior aumento trimestral desde 2017, subindo 4,9% face ao período anterior. As empresas do setor energético e a banca registaram lucros extraordinários. A Galp, EDP Renováveis, REN e EDP aumentaram em média os seus lucros em 50% face ao ano passado, com a Galp a registar 153%. Já a banca lucrou mais 75% no primeiro semestre, com especial destaque para o BCP com um aumento de 500% e o Santander Totta de 200%.
A remuneração do trabalho viu um trajeto completamente diferente. Os últimos dados do INE mostram que a remuneração bruta mensal média por trabalhador, apesar de ter aumentado 3,1% nominalmente, diminuiu 4,6% em termos reais devido à inflação. Esta tendência de decréscimo real verifica-se desde o verão do ano passado. Em junho, o jornal Dinheiro Vivo alertava para Portugal ser dos países da Zona Euro (e mesmo da OCDE) em que os salários reais mais se degradavam, apontando para a sua tímida atualização.
Os dados do INE desagregados mostram comportamentos diferentes entre os setores. O energético viu a maior progressão salarial no mês de junho (21,2%), seguido de atividades de consultoria, científicas e técnicas. Já as áreas da administração pública (1,4%), defesa, saúde e apoio social tiveram as variações mais modestas. Desde 2010 que as carreiras da administração pública estão congeladas, tendo sido apenas atualizadas em 2020 e novamente em 2022. Estas têm um caráter excecional por muitas vezes servirem de referência nos processos de negociação do setor privado.
A perda do poder compra dá-se então nestas duas frentes: um retrocesso nos salários reais e, para as classes mais vulneráveis, pelo encarecimento do seu estilo de consumo. Os exemplos acima referidos indiciam que estamos perante uma transferência de rendimentos do trabalho para o capital.
O peso ajustado dos salários em percentagem do PIB (adjusted wage share) é uma variável que ajuda a quantificar a fatia da riqueza produzida atribuída ao trabalho. Esta é um rácio entre as compensações nominais por trabalhador e o PIB nominal por trabalhor. Para garantir que se mantém (pelo menos) constante, a valorização dos salários nominais tem que ser o somatório da inflação com a variação na produtividade.
Recorrendo à previsão do governo no OE 2022 de uma produtividade de 3,5%, estima-se que a variação no PIB por trabalhador foi de 11,5% em julho (somando uma inflação, medida pelo IPC, de 8%). Sabendo que o nível de compensação por trabalhador foi apenas de 3,1%, era necessário uma valorização de mais 8,4% para que o trabalho não tivesse perdido peso no produto nacional. Assim, o valor da transferência de rendimentos para o capital foi de 7,5%, a maior no século XXI.
A história da democracia Portuguesa foi marcada por períodos de elevada inflação serem acompanhados por uma deterioração da parte dos salários no rendimento, exatamente por os salários nominais não acompanharem.
A argumentação contra o aumento dos salários tem barbas longas: o aumento dos custos de produção das empresas é repercutido nos preços finais, desencadeando uma espiral inflacionista. No entanto, tem grandes limitações. Maiores custos podem não se traduzir num aumento dos preços por ser custoso à operacionalidade das empresas alterarem os preços praticados (os chamados custos de menu). Depois, podem não ter poder de mercado para influencir o preço. Para além disso, dependendo da sua estrutura interna de custos, e das opções que façam, as empresas podem conseguir absorver esse aumento. Estes, e outros fatores, fazem com que a relação de causalidade entre aumentos salariais e aumento do nível de preços não seja comprovada empiricamente. Mais, os governos podem fixar as margens de lucro das empresas, de forma a garantir que não aumentam os preços, e devem ao mesmo tempo proteger os salários. Para além de um custo, são também um rendimento, capazes de estimular a economia.
Para além da sua degradação nestes períodos, existe um problema estrutural de baixas remunerações médias em Portugal. Embora a direita se concentre na ideia apelativa de cortar impostos às empresas para fomentar o crescimento, o que ajuda a perceber este fenómeno (e a combatê-lo) é a mudança nas relações laborais que se deu nas últimas décadas.
Por um lado, os níveis de organização coletiva caíram significativamente – no final da década de 70, mais de 60% dos trabalhadores estavam organizados em sindicados e em 2016 eram pouco mais de 15%. Por outro, houve um florescimento do trabalho precário em Portugal, sendo dos países da UE com maior preponderância deste tipo de contratos. Estes são pior pagos do que contratos permanentes e a diferença salarial é ainda mais acentuada em países com uma normalização de trabalho precário. Na mesma linha, um estudo do FMI de 2018 mostra uma relação entre medidas de desregularização do mercado laboral e uma diminuição do peso dos salários no PIB.
A inflação traz perdedores e ganhadores. O combate à escalada de preços tem que ser sensível a tal. A erosão dos salários reais é travada no imediato com a atualização das remunerações e no longo prazo com a reversão das medidas da Troika em matéria laboral.