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José Gusmão

O Futebol tem-se tornado nos últimos anos um tema de crescente interesse nas ciências sociais e no debate político, após um longo período de marginalidade. As razões para esse interesse são várias e prendem-se com a forma como o futebol tem sido uma expressão particular de transformações económicas e sociais mais gerais, com particular intensidade a partir dos anos 80, dando origem a fenómenos de resistência e conflitos sobre os quais a esquerda deve refletir.

No início desta história, estão clubes com diferentes tipos de perfil social, mas sempre, ou quase sempre, com algum tipo de ligação a uma comunidade. Em parte da tradição europeia, durante grande parte da história do jogo, o carácter associativo dos clubes era predominante. E mesmo em contexto como o inglês, o caminho para chegarmos onde estamos hoje foi tudo menos consensual.

Esse caminho foi feito de transformações a vários níveis que tiveram como efeito comum as entrelaçadas mercadorização e mediatização do jogo, a conversão dos adeptos/sócios em clientes/espectadores e dos clubes em empresas cotadas em bolsa.

Na tradição polanyiana, este processo tem sido descrito como um movimento de desincrustação, no sentido em que a mercadorização do futebol o vai divorciando da sua dimensão comunitária e das relações sociais correspondentes. Numa tradição marxista, de resto em diálogo com a primeira, Kennedy e Kennedy mobilizam o conceito marxista de fetichismo da mercadoria e o conceito polanyiano de mercadoria fictícia, para caracterizar as dificuldades inerentes à mercadorização do futebol, com consequências na evolução limitada das relações de produção e consumo nesta indústria. Numa e noutra, o processo de mercadorização é um foco de conflito social.

Uma das transformações deu-se no lugar dos protagonistas do jogo. À abolição dos limites salariais dos jogadores de futebol, seguiu-se a lei Bosman, a internacionalização do mercado de profissionais, seguida da sua financeirização, com a emergência dos fundos de jogadores, a partilha de passes, a complexificação de contratos entre clubes e profissionais e entre clubes e outros proprietários dos passes dos jogadores. A transformação dos passes dos jogadores em ativos financeiros deu origem a dinâmicas de especulação e formação de bolhas.

A consequência mais evidente deste processo foi o crescente distanciamento emotivo entre jogadores e adeptos. Uma das transformações mais lamentadas destas décadas é a morte do “amor à camisola”, que resiste sobretudo no carinho especial que é dedicado aos atletas formados nos clubes, sobretudo quando saem a bem. Mas saem. A claque do Sporting “Torcida Verde” resumiu este novo paradigma no comunicado que emitiu a propósito da transferência de João Mário (jogador formado no Sporting) para o Benfica. “Zero ídolos” tornou-se uma expressão do realismo dos adeptos, quando não da sua revolta.

Um segundo fator de distanciamento incidiu sobre os próprios adeptos. Também aqui as transformações foram variadas. Anthony King escreveu sobre o desaparecimento dos “peões”, mas houve outras transformações na arquitetura dos estádios (coberturas, conforto, dimensão das centrais, etc.). Estas transformações ocorreram em sintonia com um processo de transformação da forma como o jogo era vivido nas bancadas. A desregulação e segmentação dos preços gera uma seleção e divisão social dentro do próprio estádio. De uma forma geral, a bancada mudou para se tornar menos uma parte do campo e mais uma sala de espetáculos.

A crescente mediatização exacerbou radicalmente esta tendência. Em primeiro lugar, porque o adepto do estádio deixou de ser o adepto para passar um adepto. Um entre muitos. A crescente mediatização do futebol multiplicou a escala da indústria e diversificou os “produtos”. Os adeptos passaram a consumir, não apenas os jogos, mas toda a programação associada e publicidade. Os contratos televisivos assumiram um papel crescente nas finanças dos clubes e, portanto, no seu rendimento desportivo, agravando os desequilíbrios entre equipas.

Um aspeto singular que a mediatização traz ao processo de mercadorização de futebol é o facto de o adepto do estádio se tornar consumidor do “produto” que é servido no Estádio ao mesmo tempos que se torna parte integrante do “produto” que é servido na televisão. Esse aspeto ficou bem demonstrado durante a pandemia, quando os clubes emitiam gravações do som do respetivo estádio cheio no momento dos golos, para tentar combater a estranheza de um jogo disputado em silêncio.

Finalmente, a internacionalização do jogo levou a espetacularização e a mediatização a um novo nível. As competições internacionais milionárias, nomeadamente a Liga dos Campeões, desequilibraram os campeonatos nacionais, cavando um fosso entre as equipas que têm acesso àquela fonte de receitas e as que não o têm. E um outro fosso entre os clubes de países com grandes mercados televisivos e os restantes. Dessa forma, se foi promovendo superequipas europeias com adeptos espalhados por todo o mundo e a capacidade financeira para concentrar grande parte dos melhores jogadores do mundo. Como noutras indústrias, a internacionalização representou um processo de concentração a uma escala global.

A mercadorização da bola

O pano de fundo de todas estas transformações é a viragem neoliberal do final do século passado. A desregulação do mundo do futebol ou, para ser mais correto, a regulação de acordo com princípios liberais tentou e tenta operar a completa mercadorização do futebol. No plano institucional, isto implicou grandes mudanças, desde logo nos próprios clubes. À emergência das sociedades anónimas desportivas, sucedeu-se o crescente papel dos fundos com carteiras de participações em clubes, os petrodólares, os milionários excêntricos, ou seja, a pretensão de uma total dissociação da propriedade moral dos clubes, do controlo democrático pelos sócios, da sua propriedade efetiva.

Acontece que a empresarialização e a financeirização dos clubes estão longe de ter um currículo invejável. Em Portugal, o processo de empresarialização mais consistente já observado no futebol português teve lugar no Sporting, com a eleição de Santana Lopes, logo substituído por José Roquette, projeto que durou até Godinho Lopes. José Roquette veio mais tarde a queixar-se dos 30 milhões de passivo que encontrou quando chegou ao clube. Rahul Kumar [1] faz um balanço do que aconteceu a seguir:

“O que resultou desse processo de empresarialização é quantificável. Quando Bruno de Carvalho venceu as eleições em 2013 o Sporting encontrava-se à beira de implementar um plano especial de revitalização. O passivo ascendia a 400 milhões de euros. Gestores de grandes empresas portuguesas como Filipe Soares Franco (Opway), José Eduardo Bettencourt (Grupo Santander), Ernesto Ferreira da Silva (BDO), entre muitos outros, haviam-se revelado incapazes de gerir desportiva e financeiramente o clube. O património imobiliário – um edifício de escritórios, um centro comercial e os terrenos do antigo estádio – havia sido vendido. Os passes dos melhores e mais promissores jogadores haviam sido alienados a diversos fundos, nos quais vários bancos com representação na estrutura accionista, também tinham interesses. Sobre todos estes negócios pairou constantemente uma nuvem de suspeição. Várias modalidades de alta competição haviam sido extintas e metade dos sócios deixaram de pagar quotas. As acções da SAD desvalorizaram mais de 80% e a sua estrutura accionista era marcada por conflitos de interesses. Para além dos referidos fundos, a empresa monopolista dos direitos de transmissão televisiva dos jogos também possuía uma participação importante no capital.”

Este caso está longe de ser uma exceção. A reportagem do 74 sobre o percurso de Luís Filipe Vieira é outro exemplo das consequências da empresarialização do futebol e as ligações pouco virtuosas com outros setores. O modelo empresarial financeirizado é caracterizado pelo curtoprazismo extremo e, frequentemente, por modelos de negócio predatórios. Acresce que o dinheiro envolvido em competições internacionais faz com que os clubes entrem numa espiral de endividamento para terem acesso às receitas da competição. A partir daí, a única fuga é para a frente.

A expectativa de que a crise financeira pudesse levar a uma melhor regulação também nos clubes de futebol (como na altura alguns esperavam que acontecesse com os mercados financeiros), revelou-se manifestamente ingénua. Como na regulação dos mercados financeiro, nada muda sem luta e programa político. E no caso do mundo futebol, ambos são incipientes, para dizer o mínimo. O que não quer dizer que o potencial não exista.

O projeto falhado da superliga europeia, promovido por 12 clubes, como supercompetição europeia foi universalmente caracterizado como um projeto antidesportivo e ganancioso. Foi certamente tudo isso, mas foi também uma fuga para a frente financeira por parte de um conjunto de clubes que acumularam passivos astronómicos.

Não convém exagerar a importância deste acontecimento. Novos projetos como este irão certamente surgir e a própria UEFA reagiu a esta iniciativa com ainda mais concessões aos superclubes. Mesmo assim, deve ser assinalada forma como o fracasso desta iniciativa denunciou as fragilidades e limitações do modelo da empresarialização e financeirização. O mais importante, no entanto, foi a repulsa generalizada com que os adeptos (incluindo os destes clubes) reagiram à tentativa de consagração de uma aristocracia de clubes europeus sem qualquer sombra de legitimidade desportiva. Na amálgama de argumentos que foram mobilizados contra os proponentes pudemos encontrar expressões de um anticapitalismo contundente, ainda que não particularmente consistente.

O que o flop da superliga confirmou é que a mercadorização do futebol enfrenta uma contradição. É que a inscrição comunitária dos clubes e do próprio jogo são parte integrante do “produto”. É a essa contradição a que aludem Kennedy e Kennedy quando falam da “propriedade moral” dos adeptos sobre os clubes, mesmo que já empresarializados. Mesmo uma gestão empresarial é obrigada a incluir nas decisões variáveis relacionadas com a história e contexto específicos de cada clube e dos seus adeptos. Qual a natureza dessa tensão e dos conflitos a que assistimos ou poderemos assistir entre os adeptos e as instituições do futebol-indústria e porque é que a esquerda se deve interessar?

Para lá da sobranceria

Há já demasiado tempo que parte da esquerda olha para o futebol (e para outras expressões da cultura popular) com um desdém injustificado e contraproducente. Embora haja certamente uma evolução, estamos ainda longe de tratar o assunto com a seriedade que nos recomendaria a leitura de Polanyi e o seu conceito de duplo movimento. Se o liberalismo económico e a tentativa de instaurar mercados autoregulados constituem um movimento que dá necessariamente origem a contramovimentos, a natureza desses contramovimentos não está determinada à partida. Polanyi apontava o socialismo e o fascismo como reações alternativas ao projeto utópico, no sentido de distópico, do liberalismo económico no contexto do Século XX.

Também no futebol, a rejeição do modelo empresarializado, não implica necessariamente a apologia de um modelo associativo, assente na soberania dos adeptos, na formação e na fruição do desporto por todos. Não é difícil identificar no mundo do futebol tentativas de reincrustação assentes em lógicas sectárias, racistas ou xenófobas. O mundo do futebol está repleto de grupos de adeptos de extrema-direita, sejam esses grupos marginais ou dominantes em cada clube, convivendo com direções de clubes oriundas do mundo da gestão ou lideranças mais ou menos despóticas que mobilizam da forma mais tóxica possível sentimentos de pertença local. A existência de grupos com estas características contribuiu para que a esquerda fosse olhando para o futebol como um terreno hostil. Há, no entanto, em todos os países, provas de que não tem de ser assim.

Tal como acontece como tantos outros aspetos da cultura popular, a esquerda tem de olhar para o mundo do futebol como um território em disputa. Isso significa opor ao paradigma da empresarialização e financeirização do desporto uma proposta alternativa que pegue na melhor cultura popular e no sentimento anticapitalista que já existe em muitos dos adeptos que resistem, ou pelo menos detestam o processo de transformação das últimas décadas.

Isso implica reconhecer o desporto como parte da cultura popular e não como um fator de alienação das massas como tem sido a perspetiva dominante na nossa própria tradição política. E implica reconhecer os adeptos como um sujeito social digno de interlocução. Isso não implica recuar na crítica da promiscuidade reinante entre grandes clubes e poder político, que aliás se replica noutras escalas. Significa ter um programa para o desporto de massas, mas também um programa para o desporto de alta competição, até porque um e outro deveriam ser indissociáveis e governados pela mesma lógica associativa em que encontramos o melhor do fenómeno desportivo.

Neste último debate, a pobreza programática ou total ausência da esquerda no debate sobre a regulação do desporto, da sua economia e das suas instituições tem contribuído para a popularidade das respostas reacionárias. Se a esquerda tiver a capacidade de formular uma proposta para um desporto associativo, de massas, regulado por instituições públicas e orientada para a promoção de um desporto para todos, a popularidade dessa proposta junto de quem gosta de futebol e do desporto em geral, poderá surpreender-nos a todos. O primeiro passo é ir além da sobranceria e das caricaturas que nos têm dado conforto e ouvir aqueles que amam “o belo jogo”.

[1] «Um clube em crise: mercantilização, populismo e lutas desportivas», XI Congresso Português de Sociologia, Universidade de Lisboa e Instituto Universitário de Lisboa, Lisboa (Online), 28 a 31 de Março, 2021.