Feminismo, ilusões liberais e desencantamento

Quando ativistas feministas e LGBTQIA+ se indignam ou se iludem com manobras do mercado, é preciso voltar a falar de armadilhas liberais.


A segunda tomada de posse de Trump foi marcada pelo protagonismo dos bilionários da big tech – Bezos, Zuckerberg e Musk (este tem, inclusivamente, um lugar na nova Administração) – que doaram parte da sua fortuna à campanha republicana. Os interesses alinham-se de forma previsível: os magnatas sabem que podem contar com a Casa Branca na desregulação que os beneficia e Trump tem a garantia de que estão assegurados os meios para a difusão da sua retórica ultra-reacionária, sem o inconveniente fact-checking e a “tirania do politicamente correto” a conturbar a fábrica de mentiras e negócios. O que vimos – o alinhamento dos negócios com os interesses políticos – não é novo (muito menos com Trump), mas o seu efeito é preocupante pela capacidade de devastação que tem, num mundo em que a resistência está frágil e fragmentada e, também, desorientada ou vulnerável ao liberalismo.

1. “Estes são os meus princípios. Se não gostarem, tenho outros.”

– E tu aí, quais são os teus valores?
– Os meus valores?…
– Sim, quais são os teus valores?
– Os meus valores estão na Bolsa de Valores!
José Mário Branco, Mudar de Vida

Na mesma semana em que Zuckerberg anunciou que a Meta adotaria a mesma política de fact-checking do X, a Amazon de Jeff Bezos decidiu acabar com as medidas de inclusão e diversidade. Esta sucessão de acontecimentos causou choque e indignação em alguns setores progressistas, mas só se desilude quem acreditou nas boas intenções das medidas que existiam. Não nos enganemos, Musk, Bezos e Zuckerberg sempre se estiveram nas tintas para a liberdade de expressão e para a inclusão (nas suas mais variadas dimensões). O que os mobiliza é o dinheiro e o poder. E se a desinformação, a mentira e o discurso de ódio são o meio para chegar ao pote, pois que seja.

A mercantilização do feminismo – e de outros movimentos progressistas – há muito se revelou um bom negócio. Criou-se um novo mercado – pink e purple – baseado na ilusão de que o consumo tem a capacidade de nos libertar de tudo, inclusive do patriarcado. Entre um livro de autoajuda, um coaching de empoderamento, uma depilação íntima total ou uma labioplastia, o mercado tem solução para todos os nossos problemas, mesmo para aqueles que não sabíamos que tínhamos. Acontece que a emancipação não está à distância de um cartão de crédito, nem é uma questão de mindset. Isto já sabemos há muito. 

Ora, nas comunidades digitais geridas por algoritmos, o consumidor-utilizador também alimenta a máquina de comunicação e gera a mercadoria. O produto vendido já não é só o spray íntimo da grande corporação, mas também o próprio slogan político e a experiência virtual de ativismo feminista. As empresas beberam do discurso progressista para criar conteúdo direcionado aos mesmos utilizadores que o massificaram em primeiro lugar, obviamente lucrando com isso numa situação win-win. Consumidores pediam inclusão, as empresas tornaram-se aliadas

Mas com a extrema-direita a ganhar terreno, e o discurso conservador a massificar-se como nunca visto neste século, as mesmas empresas realinham as suas estratégias e alianças. E não há nenhuma contradição nisso, faz parte da sua natureza. Não espanta, por isso, que Zuckerberg tenha criticado, num podcast, as empresas que se estão a distanciar da “energia masculina”, prometendo compensar o excesso de energia feminina na Meta, porque, como sublinhou, é “bom celebrar a agressividade”. Só se desilude quem se iludiu. 

2. Ilusão, fragmentação, despolitização

Com a hegemonia das redes sociais, e as manobras de mercado, várias causas feminista e LGBTQIA+ se amplificaram, e se isso é positivo, pelo menos porque torna as causas conhecidas junto das camadas mais jovens, é preciso perguntar se esse progresso é real, já que ele não assenta em verdadeiras formas de organização coletiva. Como podemos chocar-nos quando os mesmos sistemas são usados para massificar exatamente o discurso oposto?

É de uma ingenuidade pueril pensar que as redes sociais são inócuas e que podemos vencer as big tech nos espaços que elas criam, detêm e regulam. Pelo contrário, as redes sociais transformaram profundamente as formas de organização coletiva. Estamos cada vez mais reféns delas e parece-nos seguro dizer que, sopesadas vantagens e desvantagens, elas empobreceram e enfraqueceram, em muitos casos, os debates e a capacidade de resistência e progresso. Isto não tem apenas que ver com o facto de as redes sociais serem um espaço onde todos os discursos se equivalem e em que pouco importa a fronteira entre a mentira e a verdade. Tem que ver, também, com as ilusões que este espaço criou e alimentou, além dos valores que reforçou e promoveu. 

O individualismo mata o movimento social

Tempos houve em que o feminismo liberal era claramente identificável com as caricaturais celebrações de mulheres no topo de grandes empresas e organizações de direita. Era mais evidente onde podíamos fazer alianças e onde esses princípios nos eram radicalmente alheios. Mas os tiques do feminismo liberal já se infiltraram noutros campos e uma parte do feminismo (e do movimento LGBTQIA+) tem-se mostrado extremamente permeável ao individualismo, com consequências nocivas para o movimento e para a sua intervenção. 

Demasiadas vezes, o sujeito coletivo tem cedido lugar a casos individuais, erodindo a ideia de que a opressão é estrutural e afeta, mesmo que diferentemente, todas as mulheres. Um feminismo centrado nos tetos de vidro e na capacitação individual como receita para a superação das desigualdades é um logro. A celebração da mulher autossuficiente – da boss woman à trabalhadora independente – como arquétipo de emancipação pode servir o cinema de Hollywood, mas não casa com a realidade da generalidade das mulheres, nem nos serve como projeto político. Este feminismo-fulanista não só deixa para trás as mulheres que limpam os cacos de cada teto de vidro quebrado – as mulheres salário-mínimo sem teto para quebrar no horizonte, as migrantes e as racializadas que limpam as casas das que vão competir para o mercado de trabalho formal -, como não tem capacidade transformadora, já que faz tábua rasa de um dos mais importantes contributos do movimento feminista: a ideia de que a opressão e a exploração que cada uma sofre não é contra si, mas contra nós, as mulheres. 

A resposta que precisamos criar ou é coletiva ou é desabafo. O individualismo é antifeminista, é um truque do liberalismo para atomizar cada pessoa na sua desgraça ou conquista. Essa é a receita liberal para o imobilismo social e assenta, simultaneamente, na autodepreciação e no autoelogio. Não é nada de novo e por isso mesmo é tão nauseante ver parte do feminismo (que não se reclama do liberalismo) capturado por esta retórica e estas práticas. 

Não há luta coletiva sem relações sociais

Há quem esteja convencido que a presença nas redes sociais é uma forma de ativismo, mas essa é mais uma ilusão liberal que só serve a quem crê que há organização coletiva sem relação com o outro. A velha e justa reivindicação dos espaços seguros, sem assédio, foi distorcida para dar lugar a um pensamento perigoso em que o outro é, por princípio, um ameaça. Esta obsessão persecutória, aliada ao enfraquecimento e/ou desistência de formas de organização e participação coletivas, tem favorecido a emergência da gritaria, da delação, da vingança, da vaidade e, sobretudo, da ausência de horizonte. Vários ativismos têm não só sido permeáveis a esta tendência como a têm abraçado, tantas vezes, de forma acrítica. E, pior, acreditando que aí reside um compromisso com a justiça social. Puro engano.

Se não nos serve um feminismo-polícia, que vigia e vê nos outros ameaças, mesmo que potenciais, também não nos serve um feminismo-securitário, para o qual a luta emancipatória passa por proteger cada mulher da própria sociedade, como ameaça global e latente, isolando-a e remetendo-a para o papel de vítima sem agência. 

Um feminismo que desiste da organização coletiva e não discute um projeto de transformação e de combate concreto às opressões é um feminismo-eucalipto. Centrado em casos particulares, na exposição mediática e em indignações incendiárias (mas fátuas) pouco ou nada contribui para a crítica, a reflexão e a construção de uma resposta. Pelo contrário, não só seca possibilidades de articulação, como, totalitariamente, ousa tentar impor a sua casuística à agenda do movimento social organizado, reproduzindo, com violência, aquilo que critica: formas autoritárias, intimidatórias e acusatórias de fazer política. O resultado é a despolitização, a fragmentação do movimento e a ausência de horizonte.

3. Organização coletiva ou nada

Estamos a enfrentar tempos difíceis. O desespero não será útil, mas também não nos serve a ilusão. As manobras dos amigos de Trump podem, sim, servir de alerta para repensarmos estratégias diante de um mercado que obviamente nunca teve nenhum compromisso com a justiça social. 

O feminismo anticapitalista e interseccional não se pode deixar capturar pelas armadilhas liberais, pelo narcisismo, pelo punitivismo e pelos usos oportunistas das suas causas. A politização performativa para ganho pessoal ou status simbólico, do escândalo ao virtuosismo, reduz o feminismo a uma identidade discursiva, simulacro de resistência, sem consequência real. 

Não nos resignamos aos “sinais dos tempos”. Sabemos que o confronto que importa disputar não se trava dentro de bolhas protegidas. Em vez de nos fecharmos em espaços autorreferenciais e nos iludirmos com fantasias liberais, talvez fosse melhor poupar-nos à desilusão garantida e empenharmo-nos na organização coletiva, na solidariedade política e na construção de alternativas que rompam com a lógica neoliberal do eu contra o outro.