Estudantes: a política precisa de experiência coletiva

O papel do estudante enquanto sujeito político sempre animou grandes reflexões à esquerda, num leque de opiniões e propostas ideológicas para todos os gostos: das menos otimistas em torno da origem pequeno-burguesa dos universitários, às mais entusiastas sobre esse sujeito político desintegrado da produção capitalista, da sua dominação ideológica e, portanto, mais livre (do que quem trabalha) para agir e atuar sobre as injustiças do mundo – caso de Marcuse e de muitos que viam nos estudantes, sobretudo desde o maio de 68, um sujeito revolucionário em potência. 

A realidade é que, na história, dificilmente se descobre sublevações sociais ou crises políticas democratizantes em que não tenham participado, muitas vezes no papel de protagonistas, os e as estudantes. Em Portugal, foram essenciais várias vezes, como nas mobilizações para acudir a população nas cheias de Lisboa de 1967, a quem o regime falhava, ou na luta contra a guerra colonial e a ditadura, acompanhando essa década de 60 em que as lutas contra a guerra surgiram e mobilizaram estudantes um pouco por todo o mundo, contra a força de bastões e de tanques, de Paris e Praga até, décadas mais tarde, Tianamen.

No marasmo pós-derrota da luta contra as propinas em 1996, a transformação das associações de estudantes em microempresas foi concomitante com o crescimento da praxe como projeto de controlo social ritualizado. O ambiente cultural geral da fase tardia do neoliberalismo configura os moldes em que ocorre a participação estudantil, em particular associado às transformações do processo de Bolonha (1999-2009), ao crescente modelo gerencialista das instituições e crise do projeto democrático da universidade pública, à assiduidade obrigatória e compressão do tempo, ao fim do ensino noturno para trabalhadores estudantes, às paredes limpas e higienizadas, tudo manifestações de uma transformação dos tempos e dos espaços da vida social estudantil.

No quadro geral, é o senso comum liberal, com ou sem a ação das juventudes partidárias de direita, que toma conta das associações de estudantes, amarrando a representação estudantil a estruturas tecnocratas e empresariais, com orçamentos de milhões e avessas à participação e contestação política. O paradigma liberal de participação, esvaziando os conceitos de cidadania e de democracia, fomenta uma cultura hostil a quem se apresenta filiado e militando na esquerda. 

A despolitização geral e o princípio do estudante utilizador-pagador vence nas décadas de 2000’s e 2010’s. As experiências de participação e inserção social de quem entra na universidade estão essencialmente reduzidas à praxe, ou a grupos académicos muitas vezes adjacentes a essa estrutura, com algumas AE’s e coletivos críticos a procurarem resistir e explorar brechas. Assim, recuando reivindicações e bandeiras de luta, as alternativas muitas vezes restringem-se a discussões táticas entre o fim das propinas ou a sua redução. O ambiente inóspito para a organização política fomenta a fuga dos ativistas para espaços de conforto e bolhas protegidas, como as sedes partidárias, longe da vida estudantil que, de uma forma ou outra, vai existindo. 

As tentativas de ação direta contra colegas em praxe tiveram expressão pontual, frequentemente sem ambição maioritária nem disputa de massas nas escolas. Por outro lado, também pouco se conquista com estratégias de “furar por dentro para chegar às massas”, mais cara a estudantes do PCP e tolerando a cultura política de opressão que a constitui. Neste contexto, a proposta de construção de mecanismos de integração alternativa parece ser aquela que, ainda hoje, constitui a alternativa com horizonte estratégico mais interessante, por procurar juntar toda a gente, sem critério de exclusão para quem participa na praxe, criando espaços sociais, políticos e culturais alternativos em torno de novos princípios, valores e práticas, ousando disputar o centro social do meio estudantil e disputando a sua cultura em torno da possibilidade de mudarmos tudo, a começar pelo sitio onde estamos. Essa é, de resto, a forma mais eficaz de acabar com a praxe e de esvaziá-la de sentido, para que não seja apenas ela a configurar a identidade coletiva estudantil e a oferecer um sentido de pertença. 

Ainda que com grande dificuldade de continuidade entre gerações, os processos de construção de listas a órgãos de representação, com programas unitários e processos de integração alternativos à praxe, como o das repúblicas de Coimbra ou o das direções associativas críticas e com perspetiva política, assim como a construção de coletivos estudantis temáticos, são alguns exemplos de processos de resistência política à vida social estudantil de feição neoliberal. Também na resposta à pandemia surgiram, online, boas experiências de assistência aos estudantes, criativamente inventadas para desenvolver solidariedade e comunidade num momento inesperado.

Para surpresa de muita gente, o grande consenso liberal sobre a inevitabilidade das propinas sofreu um abalo na negociação de um orçamento de estado na legislatura da geringonça. As propinas foram reduzidas por proposta do Bloco e o valor foi transferido para as instituições, a contragosto do campo do governo e do PS que se esmerou por lançar todo um debate público sobre o que seria mais justo, se a redução de propinas, se a ação social para os mais pobres. De fora desse debate ficou o problema de habitação que emerge. Algumas das grandes associações académicas, que sempre impediram a contestação ao valor das propinas (dado como adquirido), desvalorizaram o seu recuo para se refugiarem no tópico do alojamento estudantil, que resulta de décadas de liberalismo económico na habitação. Mas se a redução das propinas foi uma vitória, a nova questão social impõe-se. A vida social estudantil foi regulada e controlada no interior das universidades, pelas reformas aí operadas, e é no exterior, no ataque ao direito à habitação, que agora se ameaça a participação cidadã e a experiência coletiva de ser estudante.

Mas também as novas culturas políticas forjadas na era da hipercomunicação colocam novos desafios. Neste país semiperiférico, em que se sente a influência das culturas populares de massas norte-americana e brasileira e do seu combate contra os governos autoritários (Trump e Bolsonaro), sente-se o regresso do político e de novas questões sociais, em particular em torno dos temas climáticos e feministas, com a introdução de novos discursos e léxicos políticos. O questionamento de temas globais preenche o quotidiano e ocupa as expressões culturais de jovens e estudantes, com recorte de género e identidades sexuais em primeiro plano, no combate a um mundo capitalista e sua organização social, com o futuro do planeta em risco e recuos na justiça social. Dezenas de grupos promovem ações em escolas e faculdades, já não necessariamente impulsionadas apenas por ativistas com filiação partidária, nos quais recaiu durante décadas o quase monopólio das iniciativas de organização política. Surge uma descoincidência entre as novas culturas políticas e as tradicionais bandeiras de luta de ativistas estudantis, por exemplo contra Bolonha e o RJIES, processos decisivos para aniquilar a universidade enquanto lugar de contrapoder, mas que talvez digam hoje pouco aos estudantes, sendo assim pouco capazes de mobilizar indignação.

Nestas novas expressões culturais, o político regressa também na arte, na música, na cultura de massas e, claro, no quotidiano digital, muitas vezes sob a bitola liberal e numa expressão fragmentada, de afirmação identitária e individualizada. Depois do anúncio do fim da história, a realidade social e política afinal de contas sempre se move. Na era da hipercomunicação frenética e da afirmação de identidades individuais, o desafio à esquerda talvez vá além da mera politização dos colegas, passando por organizar vontades políticas dispersas em experiências coletivas reais: lutar pelo planeta, pela habitação e a cidade e por um mundo construído de diferenças coletivas. Com os pés na terra.