
Há palavras que nos libertam e há palavras que nos condenam
Artigo por Andreia Galvão, ativista climática e estudantil, estudante de Ciências da Comunicação.
Já tudo é tudo. A perfeição dos
deuses digere o próprio estômago.
O rio da morte corre para a nascente.
O que é feito das palavras senão as palavras?
O que é feito de nós senão
as palavras que nos fazem
Todas as coisas são perfeitas de
Nós até ao infinito, somos pois divinos.
Já não é possível dizer mais nada
mas também não é possível ficar calado.
Eis o verdadeiro rosto do poema.
Assim seja feito a mais e a menos.
–Manuel António Pina
Quando pensamos em violência, é frequente que nos levemos a pensar na violência explícita, aquela que vemos. A violência da guerra, da desigualdade, da bomba atómica. Mas há uma universalidade inerente em todas as expressões de violência, a embrionária face mais visível – a sua lógica. No livro “Violence”, Slavoj Zizek considera a violência subjetiva somente a dimensão mais observável de um triângulo constituído também pela violência sistémica (o resultado do funcionamento suave das nossas organizações político-sociais) e a violência simbólica, nas quais a língua se constitui como um mecanismo para reproduzir e naturalizar relações de dominação, impondo sempre um universo de significado.
No entanto, na cultura popular o discurso é muitas vezes apresentado como antagónico à ideia de violência física, que é entendida como a verdadeira demarcação de lugares. “A falar é que a gente se entende” remete para a diferença da espécie humana das restantes por nos caracterizarmos como seres falantes. Escolher o diálogo é, assim, vislumbrado como escolher a alternativa à luta e à violência.
Certos filósofos, como Hegel, declaravam que, de certo modo, a linguagem tinha de ser inerentemente violenta. A linguagem seria sempre redutora, sempre simplificando outras características do objeto a qual se refere. Este fator é particularmente importante quando entendemos que, se a linguagem se insere como violência simbólica num quadro estrutural já cria disparidades sobre o direito de reduzir, o direito de, inclusive, nomear.
Olhemos, por exemplo, para o passado colonial, para quando os colonizadores Ingleses, Franceses, Espanhóis ou Portugueses, chegavam a um local e imediatamente se apressavam a dar nomes ao que encontravam, de modo a poder reduzir a diferença a uma peça encaixável no seu universo de significados. Estabelece-se assim um poder entre quem pode enclausurar alguém no seu discurso, e quem observa nessa violência um presságio doutro género de violência.
O campo lexical usado nesta altura não se reduzia a sons codificados, mas determinava espaços sociais, definia tempos de vida, liberdades, presenças, ausências, dizia quem importava e quem não, quem era bruxa e quem era escravo .
Este entendimento é observável em qualquer protesto político: contesta-se também a linguagem como quadro vigente de um contexto repressivo. Quando o movimento antirracista contesta a temporalidade estática da utilização de escravo e a transporta para o campo do que é temporário, da pessoa que foi escravizada, está a reconhecer que a linguagem pode carregar violência, que as palavras impelem alguma espécie de consequência traduzível na realidade material.
A palavra como um campo de possibilidades
Adorno, filósofo alemão do século XX, declarou que, depois de Auschwitz, a poesia já não era possível, que o mundo na qual as palavras se arrastavam em sonoridades e ritmos deliciosos teria de ter sido aniquilado pela frieza dos horrores de guerra, da violência objetiva. O mundo ficaria reduzido à prosa seca, formal, descritiva. Mas o mundo não deixou de jorrar a música do fado, a beleza dos versos.
Talvez não haja campo tão maleável a repensar a realidade do mundo que nos envolve, através da contestação dos termos utilizados, do que está inscrito na normalidade social, desnaturalizando a violência, promovendo outra lógica para agregar as palavras. Lewis Carrol tê-lo-à resumido melhor que ninguém “Não existe melhor arma do que a imaginação na luta contra a realidade”.