Laura Carreira (Porto, 1994) é uma realizadora portuguesa a viver em Edimburgo, para onde emigrou cedo para estudar cinema. On Falling a sua primeira longa-metragem depois das curtas Red Hill (2018) e The Shift (2020, que lhe valeu prémios no festival de Veneza e no Indie Lisboa). Em Setembro ganhou a concha de prata por melhor realização no Festival de San Sebastian, e em Outubro foi premiada por melhor longa-metragem de estreia no Festival de Cinema de Londres. On Falling estreia no Leffest (Cinema São Jorge) no dia 10 de Novembro.
Laura, long time no see! Tens andado pela europa a apresentar a tua primeira longa-metragem. Realizá-la deve ter sido radicalmente diferente de realizar curtas.
O processo é muito mais longo, as curtas foram filmadas durante 3 dias, esta longa foi filmada em 25 dias, é uma diferença muito grande. Mas provavelmente a maior diferença que notei foi no trabalho com atores – as curtas estavam muito concentradas numa personagem central, no ‘The Shift’ a única interação desta personagem com o resto do mundo é através de uma chamada telefónica, no ‘On Falling’ escrevi 55 personagens com diálogo. Só me apercebi quando começamos a preparar o casting, na altura fiquei chocada eu mesma pelo que tinha feito, gosto de estar preparada e senti que tinha dado um tiro no pé ao ter escrito tantas personagens.
Como é que resolveste essa surpresa?
Um casting super intenso. Vimos centenas de pessoas para os vários papéis, fizemos uma open call para descobrir pessoas que nunca tinham trabalhado em filmes, fizemos ensaios, acabou por correr muito bem!
Fizeste este filme com a produtora do Ken Loach. Disseste-me antes que não era coincidência e que o teu trabalho estava ligado ao dele.
Quando o Ken Loach anunciou que o belo The Old Oak seria o seu último filme, a produtora começou a procurar vozes novas com interesse em fazer cinema político. Fomos apresentados, eu já tinha a primeira versão do argumento escrita e desde essa altura nunca parámos de conversar.
É uma referência para ti?
Sim, eu já conhecia o trabalho do Ken Loach, depois na universidade descobri também os filmes dos Dardenne.
Que outras referências tens?
Os filmes do John Cassavetes, que descobri na Cinemateca quando estava a estudar em Lisboa, foram a minha primeira grande influência. As personagens eram caóticas, imprevisíveis, acho que descobrir os filmes dele na minha adolescência fez sentido, é uma altura muito confusa e atribulada, ah! Mas ao longo dos anos fui influenciada por muitos filmes, cinema observacional, os filmes da Chantal Akerman, da Barbara Loden. Eram sempre os filmes que mostravam as possibilidades de contar histórias de personagens que pertencem ao mundo em que vivemos.
Estudar na Escócia foi determinante para que fizesses este tipo de filmes na tradição do cinema realista do Reino Unido?
Eu tinha 18 anos quando me mudei para a Escócia, não sei se tinha um plano muito elaborado. A universidade foi recomendada por um professor da António Arroio, pensei também em Londres e Paris, mas o meu francês é muito fraco e em Londres as propinas eram exorbitantes. Edimburgo era uma escola de artes, não dedicada ao cinema, e por isso não havia orçamentos para projetos, acabei por tentar fazer documentários por não ter de pagar a atores e grandes equipas. Acho que o lado positivo foi a universidade se ter focado mais em ideias e menos nas técnicas e câmaras etc. Foi nessa altura, coincidindo com eu começar a trabalhar também, que a minha obsessão com o tema do trabalho começou.
Dirias que é uma obsessão? És de facto reincidente no tema laboral, que já estava muito presente nas tuas curtas.
Para mim é difícil pensar em histórias ou personagens sem pensar no trabalho. É o ar que respiramos e permeia tantas facetas da nossa vida – para mim é mesmo impossível evitar o tema. Acho que, mesmo que tentasse fazer um filme que não fosse sobre o trabalho, prevejo que de uma forma ou de outra ia lá parar outra vez.
A realidade que expões no teu novo filme, da imigração portuguesa no Reino Unido, foi também recentemente trabalhada por Ana Rocha Sousa com Listen (2020) e Marco Martins com Greath Yarmouth (2022). De onde surge esta personagem Aurora (interpretada pela brava Joana Santos), imigrante portuguesa que trabalha como “picker” nos armazéns das plataformas?
Na minha última curta, explorei o tema do trabalho precário e na altura comecei a ler sobre a indústria logística, uma indústria com muito trabalho precário. Foi aí que descobri o trabalho de ‘picker’ e comecei a fazer pesquisa e a conversar com pickers. Rapidamente me apercebi que havia uma grande percentagem de trabalhadores migrantes a fazer esse trabalho e imediatamente fez sentido escrever uma personagem portuguesa. A emigração é uma realidade tão portuguesa, um terço dos jovens portugueses vive no estrangeiro, e era uma personagem que eu sabia que podia retratar com as minhas experiências nos primeiros anos a viver no Reino Unido.
Entras no tema a partir da tua própria experiência?
Pessoalmente, os primeiros anos a viver na Escócia marcaram-me muito. É tudo novo e olha-se para o que nos rodeia com muito mais atenção. Foi quando comecei a estudar cinema, quando comecei os meus primeiros empregos, os vários flatshares… a sensação de ser emigrante é muito específica e achei importante trazer essa sensação para este filme. Eu já vivo na Escócia há 12 anos, acho que agora já me relaciono com o país de forma diferente, mas o sentimento de que não se pertence totalmente nunca nos abandona. Até algo simples como “de onde és?” ser uma das primeiras perguntas quando conheces alguém, ou quando regressas de avião a pergunta na fronteira ser sempre “quanto tempo está a pensar visitar?” e ter de dizer que vivo aqui…
São décadas de histórias iguais. Lembro-me de, nos anos 90, o meu irmão ir para Londres trabalhar precisamente num armazém. A cidade quase o comeu vivo. Sentes que a realidade dos imigrantes e do trabalho se alterou com as plataformas digitais? Tecnologia do futuro, relações laborais do passado?
Estas empresas gabam-se das suas inovações tecnológicas, mas depois percebemos que muita da rapidez se deve, não a isso, mas sim a pessoas que estão a seguir instruções de um scanner ao segundo… Nas conversas que tive com pessoas que trabalham como pickers, quase todas me falavam da dificuldade de entender as metas que tinham de atingir. Isto porque não eram reveladas. É o tal “algoritmo” escondido. Os pickers só sabiam se estavam a atingir as metas de duas formas: ou recebiam warnings de que estavam entre os pickers com pior performance naquele dia/semana, ou estavam no top e recebiam recompensas miseráveis como barras de chocolate (algo que entrou diretamente no filme). Mas depois há também as consequências psicológicas deste trabalho, e isso para mim acabou por ser o tema central do filme: a solidão de trabalhar sem parar dias inteiros numa correria entre milhões de produtos, de fazer turnos que dificultam uma vida social fora do trabalho, de estar tão cansado que qualquer tempo livre é usado para descansar.
Precisamos de mais luta de classes no cinema e na arte?
Acho que as lutas se constroem em acumulação, o facto do trabalho reprodutivo ou de cuidadores ser ‘naturalmente’ conduzido maioritariamente por mulheres tem tanto a ver com classe como tem com desigualdades de género. É só um exemplo que reflete como desvalorizamos de forma sistemática trabalhos com imenso valor social.
Torcemos por um filme teu sobre o tema. Pergunta para 50 mil contos: quando é que a arte é política?
É sempre. Para mim qualquer retrato do mundo nunca é independente do mesmo e é feito com uma perspetiva sobre como vivemos. Por isso acho que, consciente ou inconscientemente, toda a arte é política.
De acordo. Tens outros projetos em preparação?
Tenho um projeto em desenvolvimento com a Sixteen Films e Film4 que vai continuar a olhar para o trabalho, mas desta vez no mundo do escritório. E estou agora à espera do resultado do ICA para ver se consigo apoio para escrever um outro filme, que seria o meu primeiro em Portugal.
ICA, do your job!!! Obrigada, Laura!