O vaivém entre os tempos alimenta a imaginação e abre os caminhos do possível. Ir ao passado, sentir o presente, por um pé no futuro não é matéria ficcional. É algo que podemos fazer todos os dias se não estivermos amarrados à presentificação, essa ditadura do aqui e agora que não nos deixa pensar de outra maneira. Assim, gostaria de propor-vos um exercício benévolo e optimista, mesmo sabendo que é apenas uma hipótese, um caminho entre encruzilhadas, nem sequer o mais provável, dada a atual configuração da relação de forças e de crenças sobre o valor do conhecimento. Nessa brecha do possível, recursar-se-iam quer as perspetivas utilitárias que o reduzem a mera instrumentalidade técnica e cientista (versões do positivismo), quer as que o denunciam como inviável, eternamente aquém e além da verdade, pela sua irredutível dependência a interesses (versões pós-modernas que encaram toda a produção metódico de conhecimento como estratagema performativo e retórico, incapaz de traduzir a realidade). Este sistema de crenças produz uma hegemonia conservadora de sinais contrários, unida, todavia, na cultura do superficial-a-toda-a-velocidade.
Gostaria de deixar claro um pressuposto: para o cenário ter validade e relevância, deve construir-se, em simultâneo, no mesmo e indissociável movimento, como possibilidade de conhecimento-transformação (ao conhecer transforma-se o mundo; ao transformar o mundo conhece-se; ao conhecer-transformar conhecemo-nos e transformamo-nos mutuamente porque não estamos fora do mundo, num qualquer lugar absoluto e soberano). Destaco, em consequência, quatro direções, todas elas interligadas, para forçar os limites do presente.
1) O conhecimento no futuro será integrador e combaterá a excessiva dispersão, fragmentária a um ponto tal que qualquer síntese se torna impossível. Queremos ser ignorantes especializados ou articuladores das relações que compõem os fenómenos? Nesse sentido, o saber terá uma vocação organizativa transdisciplinar, pois colocará questões que atravessam as redes disciplinares, sem delas prescindir. De maneira a avançar-se em direção à transdisciplinaridade há que dominar bem as disciplinas, num momento prévio, para depois, só depois, as transcender. Ao ser assim, integrador e sintético, o conhecimento procurará as grandes linhas de força que dizem respeito ao nosso viver em conjunto, pois não há realidade que não seja biológica, social e cultural. Ciências sociais, ciências da vida, filosofia, matemática, física…serão convocadas para se relacionarem e produzirem ângulos novos sobre o nosso estar-no-mundo. Nesse afã, encontrar-se-ão regularidades, algumas transhistóricas e universais, mas nem por isso inevitáveis (por exemplo, a dominação social ou a dominação masculina), que nos ajudarão a ter consciência dos pesados constrangimentos que condicionam a nossa ação, operação indispensável para os superarmos. Não que isso signifique dogmatizar essências ou postular a homogeneização dos fenómenos: para prosseguirmos no exemplo, importaria demonstrar como a dominação social se declina numa grande variedade de formas e formações sociais, no espaço e no tempo (ordens, classes, castas…), tal como a dominação masculina se irradia entre um continuum formal/informal; interpessoal/institucional; micro quotidiana/estrutural. Mas, sem conhecermos essas linhas de força, ficaremos sempre aquém do esforço que urge fazer para um futuro outro. Ao contrário das derivas pós-modernas, que confundem o cariz situado do conhecimento com a impossibilidade de conhecer, não rejeito a procura de causas, nem o seu encadeamento, plural e dinâmico. O que existe tem uma facticidade material e real, não se desmaterializa em ‘narrativas’, ‘discursos’ ou ‘linguagens’, é possível (é urgente!) explicar e compreender e não apenas “desconstruir” superfícies intertextuais.
2) O conhecimento no futuro será consubstancial, procurará todo o sistema de relações que se implicam mutuamente e em conjunto para determinar um fenómeno, sem varrer para o caixote do lixo tudo o que não encaixa nas “categorias” escolásticas e meramente teóricas ou dogmáticas: por isso, ele mover-se à vontade no estudo das contradições, das ambivalências e da complexidade. Se queremos compreender o sexismo, por exemplo, teremos não só de perceber como se reproduz o sistema “sexo-género”, como a sua íntima articulação com a subordinação do trabalho reprodutivo, a biologização e naturalização do cuidado (na íntima relação com a altricialidade secundária da espécie humana), a divisão sexual e social do trabalho no capitalismo tardio, a racialização de certas profissões (quando as famílias médias e alto burguesas externalizam o trabalho do cuidado), etc. Quer isto dizer que, em vez de pensarmos em ‘entidades’ separadas (classe, sexo, género, raça), melhor seria se olhássemos para a totalidade da experiência vivida, unindo o mais fenomenológico ao mais enraizado estruturalmente (o corpo da mulher, para seguirmos nesta senda, é uma arena viva onde se manifestam indissociavelmente relações de dominação simbólica, exploração física e apropriação do trabalho).
3) O conhecimento no futuro respeitará a pluralidade das inteligências, desprezando as conceções monistas que apenas valorizam a racionalidade, ou a técnica, ou a experiência, ou, ainda a sensibilidade, respeitando, sem hierarquizações, a circulação e o intercâmbio de saberes. Este objetivo implica superar as dicotomias entre o ‘puro’ e o ‘aplicado’, o ‘erudito’ e o ‘popular’, o ‘teórico’ e o ‘prático’, o ‘intelectual’ e o ‘físico’, o ‘material’ e o ‘simbólico’, entre tantas outras. Tal não significa que, por interpelação de um problema concreto, se deixe de mobilizar preferencialmente um tipo específico de conhecimento. As vacinas contra a Covid-19 apenas foram possíveis, para além dos extraordinários apoios políticos e financeiros que receberam, porque existia um corpo de conhecimento propriamente científico, dotado de uma certa autonomia e património que foi possível mobilizar. Contudo, se procurarmos saber, por exemplo, o que a arte acrescenta ao mundo, outros saberes seriam indagados, da mesma forma que, sem um entendimento da linguagem como operador simbólico, em nada se compreenderia a construção prática das identidades-em-relação. Também nesse sentido, o conhecimento integra, sem deixar nada ou ninguém de fora.
4) O conhecimento no futuro será coletivamente cumulativo e colaborativo, pois os pequenos passos em conjunto fazem os gigantes e os génios dormem nos cemitérios. É a rede, a partilha, o galo que toma o canto de outro galo para fazer a manhã, glosando o poeta João Cabral de Melo Neto. A lógica individualista da pretensa ‘excelência’ baseia-se no grande esquecimento da relação social como fonte e veículo da aprendizagem. A competição segrega e divide, é autoexploração socialmente induzida sob a égide do ‘projeto’ e paupérrima nos seus resultados, pois esquece todas as minuciosas peças que compõem o puzzle cumulativo. A emulação cria, além do mais, os seus deuses. Imitar, venerar, obedecer ao chefe todo-poderoso e cognoscente ou à palavra ‘sagrada’ que anuncia o ‘absoluto’ ou a’ verdade’ é da ordem do religioso e não da possibilidade. Assim, colaborar não é nivelar nem esquecer as contribuições individuais, é participar uma teia ampla e em construção, feita de todos os fios e da forma como se entretecem. Colaborar também não dispensa as tarefas de criticar, melhorar, duvidar. Conhecer não é obedecer; é estabelecer sentidos, relações e hipóteses, sob e com um património comum de inteligibilidade. Para tal, não dispensará o conhecimento do futuro de promover a crítica cruzada cerrada e tão impiedosa quanto amiga da procura da ‘verdade’ (sempre incompleta e vulnerável).
Em suma, o conhecimento no futuro seria i) integrador; ii) consubstancial; iii) plural; iv) coletivo e v) colaborativo, compromisso vivo com o mundo, com todas as espécies que habitam o planeta, tradução solidária da sua viabilidade. Nessas condições, poder-se-ia libertar o futuro da sua inevitabilidade, pois ele deixaria de ser conforme e predestinado.
Para ler mais:
Bourdieu, Pierre (1985), Propositions pour l’Enseignement de l’Avenir, https://acireph.org/nos-recherches/regards-historiques/documents-relatifs-a-la-guerre-des-programmes/article/propositions-pour-l-enseignement-de-l-avenir-par-pierre-bourdieu
Galerand, E. & Kergoat, D. (2014). Consubstantialité vs intersectionnalité? À propos de l’imbrication des rapports sociaux. Nouvelles pratiques sociales, 26(2), 44–61. https://doi.org/10.7202/1029261ar
Lahire, Bernard (2023), Les Structures Fondamentales des Sociétés Humaines. Paris : La Découvertre
Pinto, José Madureira (2007), Indagação Científica, Aprendizagens Escolares, Reflexividade Social. Porto: Afrontamento