Alerta incómodo, dedicado a todos os pais e demais educadores que passem os olhos por esta prosa: é bem provável que, neste preciso momento, no espaço supostamente seguro e controlado que supostamente é a vossa casa, um dos vossos filhos esteja a ser doutrinado para a violência e a misoginia por um influenciador do mundo digital. Sim, dentro de casa. Basta ter um telemóvel com redes sociais, o resto o algoritmo trata de fazer acontecer. Mesmo que ele não procure este tipo de conteúdos, eles acabarão por lhe chegar proativamente. Portanto, a pergunta é: que ferramentas lhe deram para lidar com este tipo de narrativa?
Falemos da “manosfera” (também apelidada de “machosfera”), termo que no último ano ganhou mediatismo graças à série Adolescência, ao trazer para o debate público o impacto desta doutrinação onlineperversa de meninos e adolescentes. Uma realidade que não é recente, aliás, já há longos anos que investigadores da igualdade de género se debruçam na análise não só dos seus inúmeros tentáculos e protagonistas no mundo virtual, mas também das consequências cada vez mais palpáveis no mundo real. São vidas que estão em jogo: as dos rapazes, manietados na construção da sua identidade e valores, empurrados para uma cartilha que está longe de os libertar enquanto sexo masculino – por mais que seja essa a promessa implícita; e as das raparigas e das mulheres, que sofrem ameaças não somente à sua dignidade, mas também à sua integridade física e psicológica. Demasiadas vezes, ameaças à sua própria sobrevivência. Sim, é disso que estamos a falar: violência que mata. Incentivada e aplaudida, enquanto forma de reafirmação de um poder supremo que aos homens pertence por direito – assim é proclamado nestes grupos.
Vamos por passos: olhemos para a manosfera como um ecossistema, que se divide em inúmeras subcomunidades de homens, com diferentes abordagens, preocupações e demandas sobre as especificidades do universo masculino. Alguns destes grupos surgiram com reivindicações até bastante válidas, como são exemplo disso a necessidade de mais apoios à saúde mental, uma proteção mais efetiva em acidentes de trabalho ou o combate à desigualdade da justiça nos tribunais de família. Mas a reflexão sobre a masculinidade rapidamente escalou de forma transversal para outro tipo de discurso e objetivo: a luta pela hegemonia masculina, ideia que prolifera desde as comunidades dos chamados INCEL (celibatários involuntários, que defendem que o seu direito ao sexo lhes está a ser negado) aos Red Pill (que afirmam “revelar a verdade” sobre as relações entre sexos).
Eles são os soldados, elas o alvo a abater
Mas como em qualquer luta, é preciso criar a ideia de um culpado efetivo para todos os males, de um inimigo. No caso da manosfera, são as mulheres. Com base numa leitura absolutamente distorcida das suas conquistas no que à igualdade entre géneros diz respeito, determinou-se que elas querem dominar os homens. Sendo, portanto, um alvo a neutralizar.
Estando a inimiga definida, há que definir uma estratégia para o que junto dos miúdos apregoam ser uma guerra, uma guerra, e eles os soldados. Para repor a ordem, definem o regresso aos valores tradicionais, com papéis de género vincados: mulheres de volta à esfera da família e do lar, longe de posições de liderança, inquestionavelmente disponíveis sexualmente, submissas, vergadas pelo homem, custe o que custar; homens bem-sucedidos economicamente, se possível através de esquemas financeiros que não envolvam perder muito tempo na escola, fortes fisicamente e implacáveis nas emoções, com privilégios assegurados pelo seu estatuto masculino, sendo o direito ao corpo e à obediência femininos uma meta. A hegemonia machista não é, contudo, somente masculina, é também, preferencialmente, caucasiana e, sem espaço para discussão, heterossexual.
Os rapazes que não cumprem tal guião são enxovalhados. Mas ninguém lhes diz que tudo isto é igualmente uma prisão, pelo contrário, garantem-lhes que se seguirem estes desígnios do “homem à séria” serão felizes. E que se os criticam pelo caminho é porque só querem o seu bem, ou melhor, a sua salvação. Estratégia clássica dos agressores.
Catapulta estratégica para a extrema-direita
Não estamos a falar de uma cartilha misógina apregoada em meia dúzia de fóruns na deep web, nem muito menos dos chamados nerdsdos computadores. Estamos a falar de grupos muitíssimo bem organizados de “machos alfa”, alavancados por movimentos radicais de extrema-direita – já lá iremos –, estratégicos na sua atuação junto dos internautas jovens, mais fáceis de moldar com um discurso falacioso no que a dados empíricos diz respeito e que remete, mais uma vez, os meninos e rapazes para uma ideia de que ser homem é sinónimo de violência sobre o sexo oposto. Que essa violência não só é válida, como é desejável. Quando os jovens seguidores o fazem, recebem aplausos e palmadinhas nas costas. Garantem-lhes a validação que certamente lhes falta, numa era em que o conceito de masculinidade sofre, efetivamente, uma revolução.
Os conteúdos publicados na manosfera exploram vulnerabilidades emocionais, identitárias e sociais num momento de formação crítica da personalidade. Por outro lado, importa não esquecer que são disseminados através de plataformas desenhadas para maximizar visibilidade, não a ética, e que pecam pela falta de legislação específica quanto ao controlo destas narrativas e mensagens implícitas. Se quisermos resumir o guião, chamemos-lhe assim, estes “gurus da manosfera” apresentam-se como homens “rebeldes”, “bem- sucedidos” e que têm “a força” para dizer o que os outros “têm medo de dizer e fazer”. Em suma, “os antissistema”. Sem temer consequências, porque se sentem acima da lei. Para jovens frustrados ou inseguros, isto pode parecer sinónimo de coragem e libertação, mesmo que, na realidade, seja apenas tóxico.
Para percebermos um pouco melhor esta dinâmica, pensemos em Andrew Tate, um dos protagonistas mais famosos deste ecossistema machista: acusado de tráfico humano e de violação, reina em universos digitais com a sua imagem musculada e o seu estilo de discurso narcisista, profundamente violento, brejeiro e discriminatório. Porém, é idolatrado por milhões de seguidores e convidado recorrente em podcastse demais entrevistas sobre masculinidade, inclusive na televisão. Quem o convida, sabe que o facto de ser polémico garante as audiências, portanto, mesmo que seja tudo aquilo que supramencionei, continua a ter espaço mediático. Também aqui a ética pouco importa.
Assim como o guru machista do universo digital português, apelidado de Numeiro, faz vídeos com os símbolos do partido de extrema-direita atualmente presente no nosso Parlamento, também Tate tem aparições em apoio público junto de políticos ligados a alas conservadoras. Aliás, recentemente foi recebido como um herói nos EUA de Trump. Não é um mero acaso: a manosfera é também uma catapulta para a doutrinação masculina no que à extrema-direita diz respeito. Tudo isto é um trabalho de trincheiras, feito lentamente, à vista de todos nós, embora blindado pela suposta inofensividade das redes sociais, e que agora colhe frutos. Basta ver o crescimento do número de eleitores jovens do sexo masculino que votam neste tipo de partidos mundo fora. Não é uma coincidência, é estratégia.
Fóruns onde se combinam violações
Temos, portanto, no meio de nós uma geração de miúdos, adolescentes e jovens adultos que são aliciados com discursos como o desta figura abjeta. E que se não tiverem ferramentas do seu lado para conseguirem questionar tais narrativas populistas acabarão por acreditar piamente que as mulheres são o problema. Culpadas pela falta de emprego, porque estão no mercado laboral a roubar lugares aos homens. Culpadas pela perda de privilégios masculinos e pela alteração de paradigmas dentro das relações, onde já
nem sempre a palavra masculina é lei, como no tempo dos seus pais e avós. Culpadas pela frustração sexual que muitos miúdos enfrentam nas suas primeiras explorações, por elas já terem algo a dizer sobre o que gostam e o que não gostam, o que querem, quem querem, como querem. Culpadas por já não serem figuras meramente submissas e as suas vozes até já se sobreporem, de vez em quando, às dos homens. Por estarem a deixar os rapazes envoltos num complexo rol de dúvidas: afinal, o que é esperado deles agora? O que é ser homem hoje? E porque não podemos deixar as coisas como estavam?
Entre o digital e o mundo real, planeiam como voltar a meter as mulheres no seu lugar secundário. Proliferam os tais conteúdos onlinemisóginos, mas também workshopsà porta fechada onde, literalmente, se ensinam rapazes a odiarem e a maltratarem raparigas. Surgem grupos em plataformas, como o Telegram, com várias centenas de participantes, onde se partilham fotos íntimas e informações privadas de miúdas e mulheres. Fóruns onde se planeiam e combinam agressões, inclusive sexuais, por vezes em grupo. Com códigos difíceis de interpretar, muitos deles com recurso e emojisaparentemente inocentes, que poucos de nós, fora destas dinâmicas, iremos compreender. Onde se aplaudem atos de violência contra as mulheres. Lá está, onde estes miúdos e jovens adultos encontram validação por terem sido agressores. Como se fosse isso o epítome da masculinidade.
O que temos em mãos é uma verdadeira bomba-relógio. Com o mundo virtual a acrescentar novas dinâmicas de agressão às já conhecidas, a desumanização das mulheres persiste e a desvalorização da violência machista continua viva. Assim como o eterno sentimento de impunidade dos agressores, ao qual se soma agora a tal perigosa validação dos pares e respetivos gurus da misoginia. Não é ao acaso que surgem amiúde casos de miúdos que filmam as agressões e as partilham digitalmente com regozijo. A adrenalina da aprovação externa faz agora também parte do jogo de poder machista.
É tempo de tirar a cabeça debaixo da areia: estes miúdos podem ser os nossos filhos, sobrinhos, netos, alunos. Nenhum deles está a salvo desta sorrateira lavagem cerebral, que lhes chega, numa fase inicial, através de conteúdos tão inocentes quanto dicas de treino, por exemplo. O culto do corpo faz parte da pauta do “macho que se preze” e, entre exemplos de musculação ou movimentos de luta, as frases soltas sobre a figura feminina enquanto inimiga, aquela que despreza os homens, que os humilha e que os quer ver frouxos para os dominar, vão sendo semeadas, a par das soluções antissistema, pintadas como a salvação. Os ginásios são, inclusive, local de angariação destes rapazes na vida real. E basta um deles fazer uma busca numa rede social sobre estes tópicos, ou clicar “watch next” quando um vídeo destes lhe surge aleatoriamente, para, tal como disse no início, o algoritmo fazer o resto.
Como se desmantela esta bomba-relógio?
Como é que isto se combate? É a pergunta para um milhão de dólares e para a qual não tenho resposta única. Até porque a culpa, quer gostemos, quer não, também é nossa. Da sociedade como um todo, enquanto exemplo falhado em muitas destas temáticas. Se estas gerações são permeáveis a estes discursos, é porque o mundo à sua volta lhes mostrou desde sempre que estas dinâmicas são aceitáveis. Desde o que veem em casa e no seio familiar, ao cinema dos heróis musculados, à indústria musical da eterna sexualização feminina, e por aí fora.
Por outro lado, pouco fizemos para dar colo aos rapazes num momento de viragem no que aos avanços da igualdade de género diz respeito. Dedicámo-nos – e bem! – a empoderar meninas e raparigas, a fazê-las crer que o mundo, no seu todo, também é delas. Que o seu potencial é válido, que a sua voz importa, que dizer não também é um direito seu, que, se for essa a sua aspiração, há mais para explorar, viver e conquistar do que o universo do cuidado e da família, que a dignidade e as oportunidades não têm género. E ainda bem que fizemos esta caminho, era essencial. Porém, esquecemo-nos que este caminho era impossível de trilhar sem
uma diminuição de privilégios históricos masculinos. Nenhum homem perdeu direitos por ser homem, com as conquistas femininas, que fique claro. Mas perderam privilégios. Menosprezámos o impacto inevitável desta perda, como se estivesse percetível para todos que direitos e privilégios são coisas diferentes. Não estava, não está.
Esta é uma geração de meninos e rapazes que se vê confrontada com a alteração de um paradigma secular de poder inquestionável. E que merece apoio e empatia também para aprender a navegar nestas águas desconhecidas. Porque, em contraponto à nossa inércia coletiva quanto a esta necessidade, eles encontraram validação, admiração e um suposto colo na narrativa falaciosa da manosfera. É tempo de recuperarmos esse lugar.
Por outro lado, não esquecer o papel fundamental da escola na educação para a cidadania e a igualdade, da qual fazem parte a sexualidade, as noções de consentimento, as emoções, o respeito pelo próximo, a lei, a liberdade individual para ser e sentir. Espaço seguros, com docentes especializados, onde dúvidas possam ser tiradas sem que haja um rótulo imediato de mentecapto. Onde o caminho da igualdade possa ser debatido com abertura e clareza, sem se tornar numa guerra entre uns e outras. Onde a informação fidedigna se sobreponha às fake news. Não é ao acaso que todos estes grupos, e respetivos partidos acoplados, desdenham desta disciplina. Sabem que dotar crianças e jovens de informação porá em causa a solidez do seu populismo vazio e que, consequentemente, será um entrave à sua capacidade de doutrinação. A educação para a igualdade não é somente essencial, é urgente. Tem de ser um direito de todas as crianças enquanto ferramenta de conhecimento para o seu futuro, protegido, sem exceção, pelas forças políticas.
Sim, é absolutamente fundamental ter a capacidade de ouvir as gerações mais novas com empatia e ajudá- las a desconstruir discursos polarizados e falaciosos. Fazê-las entender que o que lhes é vendido como libertação não é mais do que uma prisão com guião a cumprir. Contudo, é tempo também de questionarmos o machismo internalizado que ainda serve de rastilho à normalização da violência de género na nossa sociedade, começando em nós e nas nossas bolhas pessoais. Darmos o exemplo, com as nossas próprias atitudes, tem de ser uma missão. Se não o fizermos, todos acabaremos por pagar esta fatura. E não será barata.