
Micro-violências que evidenciam um macro-machismo
Artigo de Sofia Lopes, ativista e militante do Bloco de Esquerda.
A violência que permeia o dia-a-dia das mulheres nem sempre é a mais óbvia. Está escondida nos pequenos gestos, nuns olhares discretos (ou não), em ligeiros toques, em frases dissimuladas. Está enraizada de tal maneira nas diferentes instituições, tão aceite e normalizada, que a sua identificação pode ser mais difícil e até menosprezada. Sendo assim, a violência machista pode ser percebida de várias formas, não apenas física, psicológica, sexual ou patrimonial, mas também nestas violências invisíveis: as chamadas microviolências ou micromachismos (Bonino, 1999) ou neomachismo (Bordieu, 1995). Estas microviolências exercidas contra as mulheres surgem enquanto agressões encobertas durante toda a nossa vida, afetando gravemente a nossa construção de identidade através dos processos de socialização, quer na esfera pública, quer na privada.
Para começar, a partir do momento em que somos confinadas a um determinado género, regido pelo padrão heteronormativo e binário do patriarcado, cada mulher vai receber uma bagagem cultural distinta que a vai acompanhar durante toda a sua vida. Isto vai-se refletir nas tais violências de curto alcance, as não visíveis, mas muito presentes no quotidiano e enraizadas no dia-a-dia. Aliás, é a sua normalidade e insistência constante que faz com que não sejam tão visíveis. Materializam-se em atitudes, condutas e comportamentos, pequenas estratégias de controlo machista e patriarcal. Bonino (2005) identifica quatro tipologias destes comportamentos abusivos: utilitários, encobertos, de crise ou coercivos.
Por exemplo, os micromachismos utilitários correspondem a estratégias de imposição de sobrecarga e possível exaustão, por evitação de responsabilidades domésticas, familiares, laborais ou intelectuais. Quantas vezes somos enfrentadas com a suposta incompetência masculina em casa ou no trabalho, que se aproveitam abusivamente das supostas “capacidades naturais” femininas para tomar conta de certas tarefas? Quantas vezes nos delegam trabalho através de uma narrativa de amiguismo paternal? A segunda categoria de microviolências, as denominadas “encobertas”, vão no mesmo caminho. Neste caso, servem para encobrir o objetivo machista de domínio, com manobras subtis como comunicação defensiva, abuso de confiança, falta de intimidade, desvalorização e autoindulgência.
A terceira categoria, as microviolências de crise, surgem num momento em que a mulher tenta criar um balanço de poder igual. Servem para restabelecer o controlo prévio de poder e a sua manutenção de desigualdade, com estratégias de hipercontrolo, resistência passiva, distanciamento ou vitimização. Finalmente, as chamadas “coercivas” são, talvez, as mais óbvias. A utilização abusiva de uma força moral ou económica que convence as mulheres de que elas não têm razão, provocando um sentimento de derrota e incapacidade de defender as suas decisões. As técnicas são-nos conhecidas: controlo de dinheiro, imposição de intimidade e narrativas manipulativas.
Muitos outros micromachismos podem ser enumerados, desde a ausência de uma linguagem inclusiva, até a um certo humor com base no piropo e na objetificação sexual, ou mesmo na publicidade e nos órgãos de comunicação, que nos retratam ou como a mãe de família amorosa e tonta, ou como a mulher (supostamente) emancipada e perfeita, a mais apetecível para o olhar masculino. Estes comportamentos são muito mais abrangentes do que o âmbito das nossas relações românticas. São regra nos nossos professores, nos nossos colegas, nos nossos familiares, amigos e camaradas; na publicidade, na literatura, na televisão, na universidade, nos locais de trabalho. Pequenas violências de género, tão recorrentes como naturalizadas, que nos insultam e menorizam.
Micro-violência a micro-violência, constantes e diárias, inevitavelmente podem gerar exaustão e cansaço, um sentimento de abandono e, possivelmente, uma crença tímida nas mentiras e manipulações com que o patriarcado nos alimenta. E enquanto estes micromachismos não se visibilizarem e não tratemos de eliminar as suas raízes culturais e cotidianas, a violência, seja ela visível ou invisível, permanecerá inalterada. Mas, companheiras, somos tantas a lutar por um mundo que não nos agrida, que enquanto nos segurarmos umas às outras, com amor e luta, continua viva a ideia da revolução feminista e socialista. Durante o janeiro frio e escuro, é só em março que penso.
Bourdieu, Pierre. (2013). A Dominação Masculina. Relógio D’Água
Bonino, Luis. (1995). Desvelando los micromachismos en la vida conyugal. En J. Corsi (Eds.), Violencia masculina en la pareja. Una aproximación al diagnóstico y a los modelos de intervención (pp. 191-208). Buenos Aires: Paidós.
Bonino, Luis. (1996). La violencia invisible en la pareja. En 1as. Jornadas de género en la sociedad actual (pp. 25-45). Valencia: Generalitat Valenciana.
Bonino, Luis. (2005). Las microviolencias y sus efectos: claves para su detección. En C. Ruiz-Jarabo y P. Blanco (Coords.), La violencia contra las mujeres: prevención y detección (pp. 83-102). Madrid: Díaz de Santos