Na rua contra as inevitabilidades!

A construção e disseminação do chamado modelo social europeu e, integrado nele, de serviços públicos da saúde fez-se num contexto histórico específico e bem caracterizado. No pós-guerra, a reconstrução europeia, o plano Marshal, o crescimento económico que se prolongou durante 30 anos, ajudaram a criar as condições materiais para esse desenvolvimento. Mas não foi condição suficiente. A força dos movimentos de trabalhadores organizados e a “ameaça das ideias comunistas”, forçavam à redistribuição da riqueza produzida, não só pela via do salário direto, como também na criação de serviços públicos e universais. Esta é uma história simplista e incompleta sobre Estado Social mas que demonstra como os campos políticos em disputa ao longo do século XX criaram as condições para o aparecimento de serviços de saúde no continente europeu. A manutenção desses serviços até aos dias de hoje, mesmo quando todas as condições que estiveram na sua origem se modificaram, só se explica pelo sucesso retumbante que tiveram, não só em todos os indicadores objetivos de saúde e bem-estar, como na própria perceção hegemónica da sua necessidade.

Ensaiados, difundidos e praticados todos os dogmas neoliberais nos últimos 40 anos, desde a concorrência que cria qualidade até à inevitabilidade de tudo subordinar ao crescimento económico, persiste ainda assim, a ideia de proteger o direito à saúde como fundamental. Mesmo que essa ideia seja muito vaga. Houve, por isso, necessidade de fazer algo extraordinário para desmontar os serviços públicos de saúde, esboroando a base de confiança das populações. Há que degradá-lo! Se ele falhar, cria-se mais uma inevitabilidade: a gestão pública não serve, o serviço público é desperdício. Subfinancia-se o serviço público e congelam-se as carreiras dos seus profissionais, numa aliança sinergística com a promoção e crescimento dos serviços privados. Esta é a realidade de todos os países europeus, ainda que a velocidades diferentes. Da democracia cristã à social-democracia, este vórtex de inevitabilidades engoliu tudo para poder contar a maior mentira de todas: precisamos dos privados!

Mas para além da desmontagem da hegemonia, há uma dificuldade maior que os serviços de saúde enfrentam hoje: a perda de influência dos movimentos de trabalhadores. A degradação da contratação coletiva, o enfraquecimento imparável das leis laborais, a criação acelerada de novas formas de trabalho precário e “independente”, congeminaram também para enfraquecer o Estado Social. Externalização de serviços, municipalização de funções, inclusão de trabalhadores precários em substituição de profissionais com carreiras. No meio da destruição avassaladora do contrato social, sobra pouco mais aos movimentos de trabalhadores do que a luta pelas suas próprias carreiras. Na rua, pelos serviços públicos de saúde, não anda (quase) ninguém!

Ai Portugal, Portugal…

Portugal andou em contracorrente com o resto da europa. Quando o neoliberalismo chegava em força, depois da crise petrolífera dos anos 70, foi quando começamos a construir o nosso serviço de saúde. Fomos forçados a correr depressa, para compensar o atraso de décadas. Deixamos, por isso, coisas pelo caminho: a saúde oral, a ADSE, a saúde mental. A pressa não deu para tudo! E a nossa pressa não ficou sem resposta: nem 20 anos tinham passado da criação do SNS, já a direita em maioria aprovava uma lei de bases que forçava o Estado a promover o setor privado da saúde e a disseminação de seguros. Volvidos 40 anos e temos já a maior percentagem da OCDE de despesa em saúde paga diretamente pelas famílias.

Entretanto a direita ganha força com a degradação do SNS. Torna-se prevalecente na comunicação social o discurso da inevitabilidade dos privados. Veja-se a fúria recente em voltar a colocar em cima da mesa as parcerias público-privadas. Ainda todos os escândalos com esta forma de gestão estão quentes na panela, mas já se perdeu o pudor de branquear o seu fracasso. Recordemo-nos que foram os próprios privados que não quiseram renovar os contratos, ao contrário do que se tenta “vender”.

A pressão mediática sobre o SNS vai apertar ainda mais. A maioria absoluta não mexe uma palha para reverter a sua degradação, pelo contrário, promove-a. A direita afana-se com os contratos milionários que quer oferecer aos grandes grupos privados da saúde. Os sindicatos estão exaustos e desesperados porque não conseguem arrancar da maioria absoluta nenhuma conquista que se veja. Não sobra ninguém para defender o SNS…

É por isso que o aparecimento recente do movimento Mais SNS é a oportunidade que nos resta. Trazer para a rua e para a frente de combate não apenas os profissionais mas, sobretudo, os utentes do serviço, que somos todos nós. Vozes diversas têm que se multiplicar, ganhar espaço, impor presença. Não temos dinheiro, não temos comunicação social, não temos uma estrutura profissionalizada. Temos um único recurso, aquele que resta ao SNS: o povo na rua!