Quando entendemos a História de uma outra forma, que não apenas a memorização inócua de nomes e datas, interpretamos a realidade à nossa volta a partir de lentes um pouco mais criteriosas. Ou, pelo menos, fazemos mais perguntas, questionando até aquilo que parece não merecer qualquer apontamento. Porque, há anos, está assim instituído.
Em simultâneo, numa perspetiva mais científica, cada vez mais se compreende que “a representação que um grupo faz da sua História condiciona a sua noção do que foi, pode e deve ser e é, por isso fundamental para a construção da sua identidade, normas e valores” (Liu e Hilton, 2005, p.537, tradução da autora). Assim sendo, se os portugueses, aventureiros e destemidos, outrora ‘deram novos mundos ao Mundo” e encetaram a epopeia dos ‘descobrimentos’, não é difícil de imaginar a (auto)imagem coletiva construída e reconstruída por tal povo, nomeadamente na contemporaneidade.
E tal reflete-se, pois então, até nos mais banais acontecimentos, que não deixam de ser históricos, embora mereçam uma reflexão assente em competências do pensamento histórico fundamentais para um raciocínio além do óbvio e do superficial.
Nos meses de julho e agosto de 2024, por exemplo, teve lugar mais uma edição dos Jogos Olímpicos de verão, em Paris, e durante umas semanas “vestimos a camisola” e torcemos por aqueles que representaram as cores da bandeira portuguesa. Na verdade, uns vestiram mais a camisola do que outros, mas às vezes tem mesmo de ser assim!
A identidade nacional ganhou, pois, contornos bem definidos e que não suscitaram dúvidas. Somos todos portugueses e, por isso, todos ganhamos as medalhas de bronze, prata ou ouro (ou mesmo os diplomas) que os atletas de verde e vermelho e quinas ao peito alcançaram por via do seu trabalho numa ou noutra modalidade desportiva.
O ‘nós’ tornou-se infinitamente maior do que o ‘eles/elas’ e, como tal, evidencia-se aquele “nacionalismo banal” (Billig, 2014) propício à exaltação quantas vezes geradora de interpretações enviesadas ou desproporcionadas, seja de uma batalha garante da independência nacional no século XIV, seja de um evento desportivo já no século XXI.
E se a nação, por si só, é “uma ideia, um sentimento, não uma realidade material” (López Facal, 2012, p.32, tradução da autora), a identidade nacional rapidamente se transforma num produto cultural, alimentado (mercantilizado?!) pelas vivências quotidianas e sustentado por símbolos criados, como as efemérides (também no âmbito do desporto), os monumentos ou os feriados. Por conseguinte, numa espécie de jogo de identificação, projeção e simbolização, a mesma é intencionalmente reforçada quando sublinha as diferenças face aos outros – ‘Portugal acelerou a fundo no velódromo’, ‘Duo português fez história dos Jogos Olímpicos’ – e as semelhanças com aqueles que pertencem a esse inequívoco ‘nós’ – ‘Em Portugal, acreditamos em milagres’, ‘Herói olímpico do Alto Minho já está em Portugal’(sublinhado da autora).
Aqueles títulos de notícias, rapidamente encontrados numa pesquisa feita no Google, e aos quais se somam muitos outros de estilo similar emergem como mais um contributo popular para o desenho de uma identidade de cariz nacionalista, porquanto, a par de um conjunto mais amplo de outros aspetos, facilmente se convertem numa forma básica de delimitar o pensamento de cada sujeito. Se cada um não dispuser de uma literacia histórica (Lee, 2016) desejável, por motivos vários, quase de imediato se identifica com a nação (Portugal, no seu todo) que se apresenta como uma comunidade partilhada e representada pelos vitoriosos atletas (ou heróis?!). Em última instância, foram esses atletas (ou heróis?!) que concederam ‘a melhor classificação de sempre para Portugal’.
Com efeito, não percebemos (quase) nada de omnium ou madison, mas claramente aqueles dois portugueses foram os melhores, e até conquistamos o ouro olímpico. Se não tivéssemos arrecadado a medalha de prata no triplo salto – que orgulho! –, aquele atleta era só mais um que se naturalizou porque (ainda assim) Portugal acolhe todos. Foi mãe há três meses e esteve ali ao mais alto nível desportivo, independentemente do último lugar que conseguimos nos 20 km de marcha. Não trouxemos sequer um diploma olímpico na modalidade, mas foi a primeira portuguesa a chegar à fase final da ginástica artística, mais ainda depois de umas quantas cirurgias nos últimos tempos.
E o modo de relatar o ocorrido, para lá dos mil e um factos atuais que complicam (e muito!) a história do país, em muito se aproxima do formato oficial da História narrada (na perspetiva nacional, mais abrangente): há uma lógica de inclusão e, portanto, uma certa categorização inventada que faz sobressair o ‘nós’, de características positivas (e onde se incluem aqueles que permaneceram sentados no sofá durante todo o tempo da prova!); emergem heróis e/ou mitos, independentemente de contornos outros; simplificam-se os processos por via de explicações monocausais, resumindo-se ‘tudo’ à conquista, neste caso, dos diplomas ou das medalhas olímpicas.
Num sentido algo provocatório, talvez se possa afirmar que “a nação é uma narração, granjeando as suas representações uma evidente popularidade nas plurais vias de comunicação social” (Moreira, 2002, p.66). E, ao que parece, é ainda por essas vias que se favorece a elaboração de uma identidade coletiva, memória também, que vai enaltecendo, em cada época, os heróis da nação, sejam eles quem forem, e os seus feitos que, não tarda, são já verdadeiros mitos.
Se assim vai acontecendo, importa ponderar, enquanto nação (entenda-se seus outros significados) por que vias se pode contribuir, então, para o pensamento crítico e reflexivo dos diferentes cidadãos do país. O desenvolvimento da antes mencionada literacia histórica é, eventualmente, um ponto de partida quando a aprendizagem histórica se diferencia daquela aceção intencionalmente apontada logo no principiar deste texto.
Porventura, no final, sobressai a pergunta: até quando esta exaltação nacional(ista) prevalecerá? A resposta, essa, é mais complexa.
Afinal, “siiiiim”, nós somos (os) portugueses!
Referências:
Billig, M. (2014). Nacionalismo banal. Capitán Swing.
Lee, P. (2016). Literacia histórica e história transformativa. Educar em Revista, 60, 107-146.
Liu, J.; Hilton, D. (2005). How the past weights on the present: Social representations of history and their impact on identity politics. British Journal of Social Psychology, 44, 537-556.