Velhos e felizmente antiquados adágios, em (con)textos onde menina não entrava, declaravam que na tropa é que se faziam os homens. O machismo, aferrolhado em laconismo autoritário e vistas curtas, sempre sustentou o Serviço Militar Obrigatório (SMO), com o lustro apressado da apologia das virtudes formativas da autoridade e da disciplina. Mas dizia-se, também, com maior ou menor benevolência, que o SMO era um retrato do “país real” – e aí teremos que dar razão à frase feita.
Admitamos que a sentença estava plenamente correta: sim, o SMO era realmente um retrato do país fragmentado, ainda servil, ainda hierárquico, ainda com inclinação para a subalternidade e para a gestão pela bota cardada. Isso faz com que voltar à discussão do SMO, da sua necessidade ou do seu potencial, seja entrar numa espécie de máquina do tempo, tão desconectada do presente quanto reveladora do modo como este se quer redefinir.
Máquina do tempo
Entremos na máquina do tempo. Subitamente, estamos nos anos derradeiros do governo de maioria absoluta de Cavaco Silva. Milhares de jovens, nascidos na vizinhança do 25 de Abril, conseguiam aceder aos últimos anos do ensino secundário e enfrentavam a grande barreira do numerus clausus, em Universidades cada vez mais exíguas face às exigências da massificação do Ensino Superior. Florescia o negócio das Universidades Privadas, crescia a contestação às propinas e a discussão em torno de uma educação realmente pública, gratuita e universal. Do outro lado, ainda sujeitos às fatalidades da proveniência e da linhagem, estavam os sacrificados pelo sistema, os que não podiam ou não queriam seguir os trilhos da formação superior e que mais facilmente eram apanhados pelas malhas do SMO.
Se essa máquina de tempo te colocasse na estação de Campanhã, ou de Sta. Apolónia, nos idos anos 90, assistias ao encontro que – não sem fricção, tensão, paz podre – se gerava entre esses dois países. Um deles entrava no comboio especial que, todos os fins-de-semana, devolvia os praças aos respetivos quarteis, com a gritaria e a boçalidade própria de quem estava prestes a ser novamente enjaulado no rigor da disciplina. O outro, igualmente a abarrotar de jovens da mesma faixa etária, encaminhava estudantes de todo o país para Porto, Braga, Lisboa ou Coimbra centros principais de um ensino superior que timidamente se expandia.
Esse convívio de jovens de uma mesma geração, no mesmo espaço de passagem, torna evidente o tal retrato de que se falava. É que enquanto uns, “engenheiros” e “doutores” – nos quais um país à míngua de diplomas depositava esperança e mesura –, ostentavam o privilégio do adiamento ou da dispensa, os outros entravam na idade adulta arrebanhados por esses vagões, que os deslocalizavam à força das suas terras e do seu resguardo.
Talvez uma certa consagração viril, injetada a patriotismo de caserna – “Na tropa é que se fazem os homens!” –, anestesiasse o efeito de assimetria e tornasse motivo de “orgulho” o que foi, na verdade, uma imposição. Fosse como fosse, lá estava o retrato: de um lado da estação, universos de construção, democracia e crescimento conjunto; do outro lado da linha, continências, penalizações, ordens impostas e imposição disciplinar.
Da “praxe”
Não era preciso ser-se mobilizado para se poder apreciar essa curiosa fotografia. A maior parte dos universitários, principalmente os nascidos na vizinhança de Abril de 74, já nem era chamado de todo. Mas o retrato começava aí mesmo.
Toda a máquina sobre a qual assentava o SMO, todos os mecanismos que o tornavam numa espécie de fantasma a pairar, ameaçador, sobre a cabeça dos jovens portugueses (“Na tropa se faziam os homens!”) era uma imposição repugnante, que, como todas as imposições, se sustentava e exprimia num conjunto de símbolos ainda vagamente partilhados: em relatos seletivos de pais e avós onde da guerra colonial sobrou apenas o toque a reunir e a camaradagem em tempos de agrura.
A tropa era uma imposição que já se insinuava entre nós, bem para lá da chamada efetiva para as Forças Armadas. Até que isso acontecesse havia o nome, surgido no “Edital da Junta de Freguesia”, como cantava o Rui Veloso. Acabados os adiamentos sucessivos, pedidos religiosamente todos os anos até ao último de frequência do Ensino superior, havia as “inspeções”. Dois dias de ritualizado convívio com os quartéis, com os seus soldados e patentes, nas suas diversas formas de entronização na sociedade dos machos e dos chefes de família viris.
A tropa, a sua exclusiva e virulenta insinuação na vida dos jovens “mancebos”, em toda a sua bafienta hierarquia, em toda a sua horripilante fachada chauvinista, era uma panóplia de imposições, de esmagamento de identidades, de supressão de autonomia e de invalidação de tudo o que a sua norma desprezava: a vulnerabilidade, a diferença física, cultural ou sexual, mas também a periferia, a ruralidade e a pobreza. O SMO era parte de uma sociedade apodrecida pela subalternidade, pela imposição de um sentido anacrónico de dever e de uma forma inquestionada de “pátria”, que dependia diretamente da prepotência, da arrogância e da podridão dos rituais em que assentava. Entrar no quartel era a confirmação de que havia tratamentos diferentes, níveis sociais a considerar, mancebos que teriam direito a um tratamento mais amenizado, dada a sua estatutária condição de estudante universitário, ou aqueles imediatamente expostos à lei do berro e da ameaça. Toda a razão: é um retrato!
Desmilitarizar discursos
Por mais inconsequentes, e até bizarras, que se revelem as incursões recentes, da parte de responsáveis que o são pouco, a propor o regresso do SMO, elas não deixam de ser reveladoras e preocupantes. São uma espécie de regressão às apalpadelas, de tentativas de caminhar no escuro com a certeza do que se quer obter, mas ainda sem os meios necessários para alcançá-lo. Para além da reacionarite aguda, para lá da caricatura de um marialvismo que tresanda a bolor e a pequenez, estas tentativas são o vislumbre de uma visita sinistra, que apenas bate à porta enquanto não tiver força para arrombá-la.
Discutimos, hoje, um espaço europeu onde direitos e salário recuam, na exata medida em que gastos com armamento são centralmente impostos em nome de uma qualquer “segurança”. Organismos que se curvam perante a arrogância dos mais poderosos, que prescindem de leis humanitárias quando elas visam quem não convém visar, ou países europeus que falham sucessivamente para com os/as mais desprotegidos/as enquanto se vergam, com oportunismo e cobardia, ante a voz grossa do Estado genocida de Israel – vão deixando alastrar pelos seus púlpitos uma cultura de violência que deveríamos remeter para o lixo da história.
Velho como o mundo, nenhum belicismo se refaz pela juventude da sua pose ou pela frescura do seu enquadramento. Basta rasgar-lhe o retrato.