Nas redes sociais não há balas de prata: uma reflexão em 10 pontos

1) A confirmação nas urnas do crescimento eleitoral da extrema-direita, previsto por todas as sondagens, não deixou de suscitar natural preocupação e de gerar inúmeras reflexões, também sobre o papel das redes sociais. Desvalorizar a dimensão social e política do fenómeno com determinismos tecnológicos ofusca razões importantes desse crescimento, como o avanço de uma agenda política reacionária configurada internacionalmente, as insuficiências do centrão na resposta aos problemas das pessoas, a estratégia da chamada direita democrática na relação com a extrema-direita, ou a justiça como protagonista político. 

2) As redes sociais traduzem o avanço, não são a causa. Poderão, quando muito, alavancar e projetar a disseminação de ideias que pré-existem, sentimentos e medos estruturais enraizados, que ganham força e legitimação no espaço público com a presença de representação em espaços institucionais e a sua progressiva normalização no espaço público.

3) Continuam a ser poucos os temas que chegam ao centro do debate público surgindo de forma autónoma nas redes sociais sem o aval das instâncias tradicionais e da sua agenda. As grandes ideias sobre as razões do atraso/desigualdades/injustiças, assim como caracterizações de protagonistas/eventos/instituições, são, ainda, fortemente condicionadas pelo sistema comunicacional tradicional. As redes podem fomentar certas bolhas mas não são um universo paralelo. Reagem, ecoam, reproduzem e dialogam com esses temas definidos, predominantemente, na agenda mediática das instâncias tradicionais.

4) A desinformação é um problema das sociedades atuais a ser combatido com programa e propostas políticas concretas para a regulação de media tradicionais e redes sociais. A recente lei europeia de serviços digitais (Digital Act), aprovada por maioria e com a participação da esquerda, impõe mínimos de democracia às grandes empresas de serviços digitais à solta na liberalização selvagem. A limitação da utilização de dados confidenciais como crenças religiosas, preferências sexuais ou opiniões políticas, para publicidade direcionada, a proteção de menores que não a receberão diretamente, a responsabilização das plataformas pela divulgação de conteúdo de ódio e obrigatoriedade de clareza na publicidade política, são pontos de partida para um espaço público digital mais democrático.

5) A predisposição juvenil para ouvir e testar novas ideias e comportamentos é a mesma de sempre: enorme. Se nos últimos anos se assistiu a um processo de repolitização emergente – com presença na cultura de massas internacional (em particular relação com Brazil e EUA) e ligado ao ativismo climático, feminista, LGBTQIA+ ou anti-racista – a reação conservadora a esse movimento potenciou vários fenómenos preocupantes, também na juventude, como o crescimento da “manosfera” que agrega fóruns e protagonistas digitais que promovem ideais misóginos e fantasias de recuperação da hegemonia masculina, supostamente em risco.

6) O ecossistema comunicacional da extrema-direita não é dirigido. Ainda que as suas redes institucionais tenham alcance, a torrente faz-se sentir por um conjunto alargado de agentes públicos e influencers que vocalizam, traduzem e adaptam tendências e tópicos de debates que estão aí na cultura e espaços públicos digitais globais. A descentralização da comunicação é chave, facilita a socialização e sintonia com os códigos, modos e formas de comunicar contemporâneos na esfera de debate público, cuja configuração já não é património exclusivo das instâncias tradicionais (políticos, jornalistas, académicos), mas da cultura de massas. A autonomia, multiplicação e colaboração entre diferentes atores é tão decisiva quanto bots ou think tanks financiados.

7) Copiar as estratégias de comunicação mais informais na comunicação institucional – como abusar do humor ou excessivo personalismo ou simulacros que pretendem esbater a fronteira privado/público – pode criar mais dificuldades do que resolver problemas. Nem sempre modas e tendências são transferíveis entre sujeitos e protagonistas institucionais (ou percepcionados como tal) e não institucionais, ou de influencers para políticos, como se fosse acrítica a fina percepção do público digital, não raras vezes mais sofisticada e atenta aos novos padrões comunicacionais do que a de atores do campo político tradicional. Usando um lugar comum, porque ‘a forma é conteúdo’ a estratégia de comunicação feita à esquerda também não é mimetizar, ao contrário e pela esquerda, as outras que pretende combater. O marketing digital e as propostas de storytelling e narrativas, importadas da comunicação empresarial, quando adaptadas à comunicação política, por vezes têm subjacente perspectivas conformistas, negligentes e irresponsáveis face à cultura política que também promovem. E apesar de supostamente contemplarem a lógica da segmentação, a verdade é que pressupõem públicos digitais compostos de sujeitos receptores passivos e homogéneos, que também não o são. Também o engajamento nos conteúdos, alicerçado num sistema de incentivos para um discurso polarizador que responde às necessidades do modelo da “economia da atenção” para venda de publicidade, não só não se processa de igual forma para toda a audiência, como não deve ser independente dos objetivos perseguidos. Porque na relação com temas e questões sociais não se procura, à esquerda, a vocalização e representação por via de respostas simplistas e sentimentos primários mas de encontrar respostas diferentes e aspiracionais aos descontentamentos sentidos. É aqui que a política não deve ser ultrapassada pela técnica: é que por via da comunicação também se alimentam culturas políticas próprias.

8) Existem razões técnicas também, e a distância da esquerda para setores tecnológicos, tradicionalmente liberais, dificulta a compreensão das novas ferramentas disponíveis para a disseminação de ideias. Esse fosso pode e deve ser encurtado.

9) Se o algoritmo limita à bolha, o problema não está só no algoritmo mas também nas condições sociais que favorecem a perpetuação das bolhas. A luta social, além de provocar novos conflitos sociais e políticos que marquem a agenda e repolitizem descontentamento, pode também construir no mundo real novas sociabilidades e redes de contacto, novos protagonismos, suscitar novas expectativas de representação, novos públicos e procuras digitais, novas fidelidades e identidades ativistas/cidadãs. Dos estafetas e novas lutas laborais às lutas pela habitação, do anti-racismo aos direitos dos imigrantes, no clima, feminismo e lutas estudantis, encontram-se já muitas pistas de processos de representação política que alimentam novos sujeitos e protagonismos individuais e coletivos. No tempo atual, é inevitável que estes novos sujeitos se transformem também em novos sujeitos comunicacionais. São precisos mais.

10) O projeto de transformação da extrema-direita é mais fácil do que o da esquerda. A extrema-direita conta com muito a seu favor para espalhar ódio: a estrutura patriarcal, racista e de classes, bem como a hegemonia da lógica neoliberal de exercer cidadania e participação democrática a baixa intensidade. À esquerda não basta a divulgação de chavões para provocar mudança. As redes sociais têm de caminhar a par dessa política e ação transformativas, não à frente. Devem ecoar para fazer avançar os conflitos sociais e políticos de resistência ou de transformação, não substituir-se a eles. Enfrentar os novos desafios que hoje são colocados, sem atropelar as tarefas de sempre para os problemas de sempre.