Há uns tempos vi na CNN uma entrevista de um notório democrata afro-americano que falava depois da vitória de Donald Trump. Comentava o modo como ele e as equipas democratas gozaram com o facto de, em muitos Estados, os republicanos não terem feito campanha de rua. Não se via panfletos nas casas, não se encontravam a bater às portas de muitas regiões. Em retrospectiva, fica claro que os canais de difusão das ideias de Trump não foram meramente transmitidos nos modelos tradicionais nem tampouco nos canais de media tradicionais, que notoriamente hostilizaram o candidato (excetuando a FoxNews e outros tipos de jornais alinhados). Trump fez campanha nos podcasts de “bros”, em canais de media alternativos, no YouTube, no reddit. A sua entrevista no podcast de Joe Rogan, o mais ouvido podcaster norte-americano, atingiu nos primeiros três dias 38 milhões de likes. A recusa da participação de Kamala na mesma plataforma foi publicamente conhecida e até criticada em muitos quadrantes do partido.
Enquanto a candidata dos democratas se promovia na CNN e caminhava ao lado das estrelas de Hollywood, a campanha de Trump reconheceu e participou na descredibilização dos meios de comunicação tradicionais. Outros protagonistas da direita radical, como Milei, têm seguido este caminho. Esta percepção tem sido cada vez mais amplamente reconhecida por pessoas tanto de direita como de esquerda como mecanismo de propaganda da ordem liberal do capitalismo corporativo (tanto por pessoas do Partido Democrata como do Republicano). Veja-se como nas redes sociais se reagiu à crítica acérrima de Luigi Mangione e à defesa do CEO de seguros por si assassinado. Nas redes estava a ser celebrado o asssassino de CEOs.
Os media tradicionais também veicularam mentiras que serviram para justificar intervenções imperialistas, como a invasão do Iraque. Convocaram o espírito anticomunista com a campanha do Red Scare, classificaram a luta palestiniana e as lutas por direitos civis dos afroamericanos como terroristas; criaram e reproduziram caricaturas da pobreza norte-americana (rednecks e hillbillys), produto da desigualdade económica brutal. O factchecking facilmente se torna num mecanismo também para ocultar o viés ideológico dos próprios meios. Os media deixaram de ser o quarto poder (os cães de guarda da democracia) mas têm agido como cachorrinhos de colo dos poderosos, como já nos alertou Noam Chomsky. Os interesses minoritários da elite económica parecem ter-se tornado mais importantes para os canais do que o interesse geral das populações.
Todas estas instâncias têm motivado a falta de crença nos media como transmissores da verdade. Além disso, cada vez mais pessoas têm evitado notícias sobre alguns temas em particular como por exemplo a crise do custo de vida e a guerra na Ucrânia (fenómeno também denominado de news avoidance).
A verdade objetiva existe?
Hoje, a verdade está cada vez mais divisiva e impopular. Com a profusão de meios de comunicação, de interação acelerada a nível global, popularizam-se as infames teorias de conspiração.
- O COVID é uma conspiração artificialmente criada pelas elites
Esta Teoria foi altamente popularizada durante a pandemia. Há várias justificações apresentadas: o 5G precisava de ser instalado e era preciso que as pessoas ficassem em casa; a vacina servia como uma forma de inserir microchips nas pessoas (muita gente aponta o maior interessado nisso o bilionário Bill Gates); o vírus foi propositadamente criado pelo Governo Chinês como uma arma química para aniquilar parte da população.
- A grande substituição
A grande substituição é uma teoria amplamente popularizada pela extrema direita, pelo campo neonazi. Começou pelo autor francês Renaud Camus. A teoria afirma que houve uma cooperação das elites para substituir as populações europeias por imigrantes (especialmente árabes) através da imigração em massa e da quebra da natalidade europeia. Há até quem afirme que se trate de um genocídio branco. O propósito desta teoria da conspiração é muitas vezes afirmado tendo como objetivo de assustar pessoas brancas e justificar a agenda política dos nacionalistas brancos para apoiar atos de violência racial contra não-brancos e minorias.
- Deep State
Esta é o mito/ teoria da conspiração fulcral, porque é sobre o poder de estado e é aquele que permite organizar-se um movimento politico da extrema direita que capitaliza este caldo cultural das várias conspirações, oferecendo um alvo concreto.
As teorias de conspiração têm efeitos reais na vida social. A teoria do QAnon (envolvendo uma teia complexa de narrativas desde uma rede de tráfico de crianças à iminente prisão da Hillary Clinton) motivou 22 ataques violentos, incluindo raptos, tentativas de assassinato, etc As teorias da conspiração desenrolam-se como um novelo de lã, acelerando processos indutivos, fazendo muitas vezes deduções falsas e utilizando como argumentação dados facilmente desmentiveis. E os seus impactos são absolutamente verdadeiros: famílias desagregam-se (veja-se no tempo de COVID com as pessoas anti-vacinas), podem originar episódios violentos em pessoas já emocionalmente vulneráveis e provocam isolamento (pode ser considerado uma forma de sobrancerismo de pessoas com mais acesso a ferramentas de desenvolvimento do espírito crítico em detrimento de comunidades mais empobrecidas).
E tudo isto importa-nos porquê?
Podemos ser levados a achar que estas teorias de conspiração influenciam apenas uma parte da sociedade com um determinado perfil de susceptibilidade. Mas isso não é verdade. Segundo um estudo da Universidade de Chicago, pelo menos 50% das pessoas nos EUA acredita em pelo menos uma teoria da conspiração. Embora muitas sejam propagadas por atores de má fé (neonazis, supremacistas), a questão é: porque é que tantas pessoas acreditam nelas e o que é que a esquerda tem a ver com isso?
Quando olhamos para estas teorias reparamos que há temas que surgem recorrentemente: o controlo global das elites, uma suspeição do funcionamento do governo. Isso permite-nos suspeitar que as teorias de conspiração não causam necessariamente a desconfiança que podem ser um sintoma da mesma (embora também possam assumir contornos de sujeito de desconfiança num processo dialéctico).
Um exemplo concreto. A globalização foi um processo de longo termo com resultados positivos e negativos. A ciência económica oferece uma compreensão abstrata do processo, visto como a internacionalização final do comércio, do capital, das finanças e do trabalho. O lado anti-globalista vê a globalização como o motor de um novo modelo de imperialismo, que substitui o antigo expansionismo militar por instrumentos económicos. A visão conspiratória sustenta ainda que a globalização é um processo subversivo, dirigido durante centenas de anos para servir os interesses das elites globais. Mesmo que não haja evidências claras de uma grande conspiração para globalizar a economia, podemos mostrar que a globalização é um processo conduzido por intenção e interesse individual/grupal em diferentes períodos de tempo, de forma sequencial e sistemática – e não por escolhas aleatórias de indivíduos desorganizados que buscam a ampliação de seus lucros. É aqui que intervém o raciocínio conspirativo, trazendo vários argumentos que sustentam a hipótese conspirativa: a intencionalidade nos processos económicos, a necessidade de um raciocínio causal e o interesse privado dominante na relação massas-elites. A própria esquerda fez parte de movimentos por uma diferente cooperação internacional, é da tradição da alter-globalização que nasce o Bloco.
Quando tudo passa a ser conspiração
O termo teoria de conspiração começou a servir como arma de arremesso pelos meios de comunicação tradicionais como forma de desqualificar posições contra hegemónicas. Confundindo crentes na teoria da Terra Plana com militantes anticoloniais palestinianos passa a sua ideologia por verdade numa aproximação orwelliana.
As teorias de conspiração são respostas difusas perpetuadas por meios de comunicação hiperfragmentados provocados por desconfiança sistémica. A esquerda já lhes soube dar uma resposta unificadora (o exemplo do movimento anti guerra do Vietname) endereçando as causas estruturais, mas hoje também é vitimizada pela fragmentação social e excesso comunicativo. Também sofre da sua própria institucionalização, da dificuldade de posicionamento ideológico marxista no Ocidente pós fim da URSS.
O mundo está em rápida mudança e os mitos antigos não nos ajudam a entender este mundo novo. A esquerda não deve negar o sentimento de que algo na sociedade não está bem. Não vence taticamente assumindo o papel de defender as instituições políticas liberais que, desviadas da sua intenção original, hoje promovem a mesma situação de exploração e desigualdade que gera a desconfiança democrática. Hoje é o tempo de aprender a redirecionar essa energia conspirativa, de dúvida para a construção de um projeto coletivo que nos aproxima. A teoria de conspiração é uma forma de renúncia individual da verdade reforçada coletivamente e a mera difusão infindável de explicações sobre os problemas que atravessamos promove o caos social e não nos permite resolvê-los. A luta de classes, a luta por uma sociedade mais equilibrada tem de ser construída através da criação de uma percepção generalizada sobre os problemas, só possibilitada pela organização coletiva. Parte do trabalho militante hoje não é só fazer política, mas antes criar comunidade, coesão social, combater o isolamento a que a maioria das pessoas estão relegadas. Hoje temos de competir com as redes sociais como forma de expressão individual e de encontro dessas necessidades básicas de socialização e de entendimento sobre o mundo. Podemos ter a ambição e a coragem de afirmar que procuramos ganhá-lo. Embora seja um facto que as redes sociais geram hiper realidades e tenham existências próprias, as pessoas ainda procuram nas redes sociais as confirmações das suas intuições e experiências. E isso pode funcionar a favor de uma esquerda que se embrenha de forma significativa na vida das populações.