Notas sobre a crise da social-democracia

1. Os regimes de social-democracia ocidental entram numa crise estrutural perante os nossos olhos. Os ciclos de crises sociais e económicas cada vez mais curtos, o avanço da extrema-direita e a erosão do tecido social e dos laços sociais e de solidariedade são disso prova. Fundado sob premissas de consenso e diálogo que atenuaram a luta de classes, este regime começa a mostrar as suas fissuras, sucumbindo cada vez mais a um paradigma de polarização e de conflito.

2. Por todo o lado, a extrema-direita cresce como sinal de contestação a um regime em decadência. Como fez antes na República de Weimar, na Itália pós-Primeira Guerra Mundial e em Portugal, aproveita-se da instabilidade social, económica e política do capitalismo para semear desconfiança e apresentar-se como solução. Mais uma vez, a retórica contra a diferença ganha força, galvanizando forças reacionárias, mas também massas de trabalhadores desiludidas com os limites e falhanços de uma social-democracia a favor das classes dominantes.

3.A resposta da social-democracia tem sido impotente e até patética. Nos Estados Unidos, contra a ameaça de golpe, mantém-se a figura de Biden. Nos Países Baixos, os partidos do centro pulverizam-se entre si, abrindo o flanco à extrema-direita. Na Argentina, com uma inflação de mais de 100%, o candidato que se apresentou como oposição à extrema-direita foi o ministro da Economia do governo vigente. Mesmo no Brasil, onde uma aliança mais ampla foi possível graças a um candidato consensual, a vitória foi arrancada a ferros e nada na ação política de Lula nos garante que as próximas eleições não serão também altamente disputadas com a extrema-direita.

4. Ao centro, as forças políticas empenham-se em dois principais pontos estratégicos para travar a extrema-direita. O primeiro é a defesa do status quo, mesmo que esse status quo seja a degradação brutal de todos os aspetos da vida dos cidadãos e cidadãs. Isto é, chegado a este ponto de descredibilização das instituições democráticas, a sua principal proposta é manter tudo igual. O segundo é a criação de uma narrativa que torna o voto nas forças de centro no voto de entrave à extrema-direita. Isto é, deixa de interessar a política e passa a interessar apenas impedir a extrema-direita de governar. Ambos estes pontos estão errados pela mesma razão: não são radicais. Não atacam a causa do problema, não mudam nada, não resolvem os problemas da social-democracia nem dos seus cidadãos – apenas adiam o inevitável.

5. Enquanto estas fúteis tentativas são postas em prática, instala-se um paradigma social e político de polarização que mina a esfera pública e debilita a social-democracia. Em vez de acentuar a luta de classes, esta polarização fragmenta politicamente ainda mais a classe trabalhadora.

Reconstruir qualquer tipo de sociabilidade e solidariedade torna-se mais difícil quanto maior é a polarização. Em Itália, Portugal, Espanha e na Alemanha, só foi possível fazê-lo após a queda dos regimes fascistas. Uma classe dividida contra si mesma não terá força para ser o motor de qualquer transformação social que altere a relação de forças a seu favor, e mesmo se tivesse, estaria demasiado fragilizada para concretizar a mudança necessária.

6. Este paradigma de polarização espalha-se a nível internacional. O que começou como um avanço subreptício da extrema-direita e foi sendo desvalorizado como situação pontual, fruto de realidades concretas, demonstrou ser uma vaga de fundo transversal à social-democracia e consequência dos seus sucessivos falhanços. Por isso se torna ainda mais difícil combater o avanço destas forças reacionárias. Embora tenha como seu motor a insatisfação popular com as condições de vida, rapidamente a extrema-direita conseguiu criar um arsenal cultural e simbólico, que se apoia no conservadorismo como reação a uma realidade constantemente em mudança e que se alastrou por todo o ocidente com os mesmos pontos de pressão.

7. A nossa estratégia deve compreender esta realidade. Aproximamo-nos de um ponto de rutura a uma velocidade vertiginosa. Apoiar um travão à extrema-direita que mantenha tudo igual – não desvalorizando o seu valor tático – é apenas adiar o inevitável. Um travão não basta. Precisamos de estratégias de combate. Combate à degradação das condições de vida, das instituições e do sistema económico que estão na base do descontentamento social, e combate ao reforço da cultura conservadora e individualista que oblitera os laços sociais e de solidariedade e que coloca sempre a diferença como causa do descontentamento social. Se não estivermos preparados para os combates que se avizinham, a História repetir-se-à.