(Novas?) Cartas Portuguesas

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Ana Teresa Fonseca

 

Tu, mulher olhando o seu corpo como coisa distinta, como seu próprio objeto erótico, e não como seu eu (porque toda a sobrevivência da cidade assenta nessa prática, do corpo se retirou a mulher para que aquele possa ser usado e explorado sem resistência pessoal) (Barreno, M.)

 

Todas elas mulheres, todas elas submissas, todas elas receosas de si, todas elas presas no e pelo seu próprio corpo. Desde Mariana Alcoforado, freira de Beja do século XVII, às Três Marias do século XX, ou a nós, mulheres do século XXI, todas nós nos mantemos cativas do patriarcado e da sua repressão sobre o corpo.

Cinquenta anos após a publicação das Novas Cartas Portuguesas é-lhes reconhecida a sua relevância pelas críticas ao colonialismo português, pela denúncia das desigualdades sociais e da violência de género, mas a verdadeira afronta “imoral e inadmissível” que deu início ao processo jurídico das Três Marias foi a libertação do corpo das mulheres através de palavras escolhidas e produzidas por mulheres. A escrita serviu de ferramenta de libertação pessoal e, em simultâneo, de conquista da palavra com que podiam finalmente exprimir tudo aquilo de que tradicionalmente não eram senão objeto.

A intemporalidade é uma das marcas distintivas das Cartas, dando azo a constantes interpretações sobre os mais variados temas. Contudo, não deveria a negação do direito à sexualidade feminina ser uma questão datada, já resolvida e desconstruída? Não é, no final de contas, a personagem de Mariana Alcoforado retrabalhada precisamente através da sexualidade como via para o seu autoconhecimento? Não foi já substituída a “verticalidade fálica” pela noção de “profundidade útera” como elemento valorizado e criador?

A resposta encontra-se, por exemplo, na falta de investimento na educação sexual, que permanece heteronormativa, machista, quase exclusivamente biológica e essencialista. Como se não bastasse, grande parte das escolas não cumpre a Lei nº60/2009, definidora da obrigatoriedade da educação sexual desde o 1º ao 12º ano, visto que as horas que deveriam ser dedicadas ao tema e à extensão dos restantes currículos é um grande obstáculo. Não deixa de ser uma prova de que a lei se encontra dois passos à frente das práticas institucionais, mas todas sabemos que a sua desvalorização é resultado de uma cultura que sempre tratou a sexualidade como assunto tabu e exclusivo de homens. Ainda assim, a sua ocupação sistémica tem sido capaz de encontrar lugar fora dos locais de ensino.

Até dezembro no Musex, e janeiro no Museu do Aljube, podem ser visitadas as exposições “Amor Veneris – Viagem ao Prazer Sexual Feminino” e “Adeus, Pátria e Família” respetivamente. Estes espaços procuram explorar as diversas questões da sexualidade e as suas construções e desconstruções, enfatizando o sexo, o género e as suas expressões não só como objeto mas também como sujeito de estudo e análise. Talvez um certo alívio seja a reação mais imediata após a assimilação destes exemplos. Verifica-se a edificação do que as Três Marias começaram. Assiste-se à valorização da “educação sexual” (no seu sentido mais amplo e aberto a re-significações) em instituições do corpo civil. Além disso, importa não esquecer que ambas as exposições integram uma perspetiva inclusiva. Não se cingem exclusivamente à libertação do corpo da mulher, tradicionalmente confiscado pelo homem. A libertação em causa é a de todos os corpos,  integrando o espectro binário ou não. O sujeito de quem se liberta pode ou não ser o homem.

Por falar em libertação dos corpos e de acompanhar as vontades que mudam com os tempos, na Hungria entrou em vigor, a 15 de setembro de 2022, uma lei que obriga as mulheres a ouvir o batimento cardíaco do feto antes do aborto. Apesar dos seus 50 anos, as Cartas são realmente, mas infelizmente e ainda, novas.