O dia em que Shane MacGowan morreu não foi, simplesmente, um dia de luto.
Não se resumiu ao usual tributo de circunstância – generalizado, mas efémero – a uma estrela pop internacional, de resto há algum tempo afastada dos palcos e dos holofotes. Não foi sequer, como se espera sempre da reação instantânea e do lugar-comum, a constatação de que uma vida de excessos faz mal, e que há consequências para a inclinação etílica de Shane, a que a música deu fama e a que o quotidiano deu proveito. Este dia, o dia do desaparecimento de Shane MacGowan, foi a data em que um bardo da cultura popular, um narrador participante do quotidiano working class, saiu de uma cena a que tanto assistiu e que tão bem reportou: a cena do preso político na causa irlandesa (Streets of Sorrow / Birmingham Six); a cena da pessoa transsexual, sujeita à brutalidade do preconceito (The old main drag); a cena do flagelo social da Inglaterra de Thatcher (White City).
Mas este texto não é sobre Shane MacGowan ou sobre os Pogues, o que traz dúvidas quanto à intenção desta introdução, vagamente homenageante. De que falaremos nós?
Waltzing Matilda, conhecem? Uma canção de origem incerta. Um hino adotado por exércitos e por hordas guerreiras, como os fuzileiros norte-americanos, também usual nos saudosos cantarolares de muitos soldados de pantufas, de tantos e hoje tão públicos adeptos do crepitar do Napalm, que saltam para o espaço das televisões a comentar mais um raide sobre Gaza. A pomposidade com que se qualifica como “geoestratégico” aquilo que, na verdade, é apenas um segmento da mesma lógica de esbulho de uma globalização de rapina, permite uma bela desculpa para puxar o lustro às medalhas e entrar pelas televisões dentro, em nome da “defesa de Israel”.
E é aqui que entra o alcance subversivo da cultura popular.
Se a Waltzing Matilda original glorificava o guerreiro, esta outra desarma-lhe o garbo e a glória, para mostrar o horror como ele é. E conta-nos a história de um jovem como qualquer outro, a viver a “vida livre dos vagabundos” até ser chamado a prestar serviço militar e a ser mobilizado para a guerra. Ao longo da canção, as mais cruas incidências da guerra são desmascaradas, convertendo esta Waltzing Matilda, este hino marcial de vagos heróis, em testemunho em carne viva. Uma outra Waltzing Matilda denuncia a velha lógica do discurso das virtudes da guerra, graciosamente subvertida, na sua versão mais célebre, por ação dos Pogues e pela voz de Shane MacGowan, que interpretou como ninguém o poema antimilitarista de Eric Bogle: “Now those who were living did their best to survive/ In that mad world of blood, death and fire/ And for seven long weeks I kept myself alive/ While the corpses around me piled higher”
Esta outra Waltzing Matilda revela o outro lado do heroísmo marcial, a face oculta da virilidade soldadesca, mandando às malvas o louvor do sacrifício patriótico e da abnegação das armas e da pólvora. A voz de Shane, tão cortante e irregular quanto uma realidade que sabe convocar, em toda a sua rudeza, executa com enorme eficácia uma das urgências de todos os tempos, muito especialmente do nosso tempo: oferece o avesso, o outro lado, o que não se vê – o soldado estropiado, que assiste com amargura e sarcasmo ao desfile majestático dos seus camaradas de outrora. A música convoca o sofrimento real, a tenaz consequência de todas as guerras, que desembocam – passe, mas pese a contradição – numa espécie de conclusão de partida: “…no more Waltzing Matilda for me”.
Mudar de ritmos
Mantemo-nos, aparentemente, no ritmo de Shane MacGowan, mas é outro o dia em que o escutamos. Lembram-se de quando os fundos europeus de resposta à Covid19 se designaram por “bazuca”? Ou quando um recém-empossado presidente dos EUA, Joe Biden, falava de uma mobilização “guerreira” conta a pandemia, socorrendo-se de todo um léxico tão repetido e conhecido? Para Biden, o que estava em causa era um “empreendimento de guerra”, uma “full-scale wartime effort to address the supply shortages by ramping up production and protective equipment, syringes, needles, you name it”. Antes da invasão da Ucrânia, bem antes do alto patrocínio norte-americano ao massacre de civis em Gaza, já se colocava uma questão de saúde pública sob a retórica das armas, com esforços de guerra e “linhas da frente” e tudo. Soavam as palavras armadas e as Waltzing Matildas, sem cuidar do modo como as palavras servem para naturalizar ações, para provocá-las ou para tentá-las.
Ora, mesmo em velhos e privilegiados enclaves de paz, a banda continua a tocar o seu Waltzing Matilda. Rufam os tambores da escalada bélica, encorajam-se alargamentos de orçamentos para defesa, num país que ainda se não dignou a dedicar 1% do Orçamento de Estado para a Cultura. Por todo o lado regressam “trincheiras”, “bandeiras”, apologias de abnegação pela pátria embrulhadas em discursos marciais, a que nos vamos habituando cada vez mais.
Ora, as palavras são política à solta. Revelam ordens de poder ou abrem vias para a sua destituição.
Uma das etapas em que isto se tornou especialmente evidente foi, claro está, o Maio de 68. Não foi um momento isolado mas, tendo o olhar europeu por referência, foi especialmente importante e revelador. As palavras de ordem, que invadiram as ruas e que se afirmaram como elementos criativos inultrapassáveis para a afirmação do movimento social, foram escritas pelas paredes da cidade, como motes transgressivos para a abertura de possíveis. Maurice Blanchot, um dos intelectuais que aderiu ao movimento, chamou-lhes “palavras de desordem”. Assim se designariam, não por encorajarem o caos ou a zaragata, mas por apontarem para algo que não tem ainda uma ordem – que dispensa e recusa a ordem anterior das coisas. “Palavras de desordem” são palavras que navegam por veios de incerteza e que duvidam dos próprios meios pelos quais habitualmente se difundem. Não cabem em jornais, demasiadamente na “ordem do dia”, nem em livros, sustentados na cultura que importaria destituir. Não quer dizer que estes meios fundamentais sejam dispensáveis – bem pelo contrário! Significa que não chegam, no momento da criação de impossíveis, para dizer e para difundir uma realidade que se refaz continuamente, permanentemente. As palavras são então palavras cantadas, são palavras escritas na parede, gravadas em mural ou esboçadas em pancarta. No seu movimento permanente são tão esperançosas e tão construtivas quanto incertas, ou nunca seriam verdadeiramente revolucionárias. São efémeras porque – Blanchot dixit – correspondem a suspensões do tempo histórico, a suspensões do relógio, a culturas irredutíveis às formas dominantes da afirmação e do dizer-se: “Aparecem, desaparecem. Não dizem tudo, ao contrário arruínam tudo, estão fora de tudo. Agem, refletem fragmentariamente. Não deixam rastro: traços sem traço”.
Há uma mudança de ritmo, a imposição de uma mudança de cadência no tempo que se torna evidente e fundamental. Essa mudança teve, porém, graves fatores de emergência, que convém não adornar com romantismos. Vivia-se um mundo em colapso ante a arrogância dos poderes, ou face às violências coloniais, ou perante o cinismo da força bruta. O contraponto viria com novas palavras, capazes de fazer diferente e de construir de toda uma outra forma.
Mudar de Palavras
Em suma, vivia-se – vive-se! – um enorme fosso entre diferentes ordens de discurso, tão distintas, tão irredutíveis que dificultam a própria confrontação. As palavras, que não são tudo, que nem são nada sem o resto, transportam o essencial. É preciso dizer diferente, juntamente com o fazer diferente. As roturas dão-se, realmente, na distância enorme que espaça essas diferenças.
Raymond Williams, sociólogo da cultura e pensador da esquerda, foi um dos que deu atenção devida a esta distância entre palavras, formas de dizer e, como tal, de habitar e de construir o mundo. Para isso, chama atenção para a expressão, tão comum e tão internacional, “simplesmente não falamos a mesma língua”. A expressão inscreve na linguagem comum o desacerto entre realidades sociais que, no caso de Williams, se demonstra na contradição entre as raízes populares da sua infância e juventude, em Gales, e a sua migração para contexto universitário, na culta e letrada Cambridge. A vida traria outros contrastes, novas evidências do desencontro entre linguagens, quando Williams é mobilizado para a II Guerra e quando regressa, finalmente, a Cambridge, após esse período de mobilização. Refletiria longamente sobre isso, constatando como esse desequilíbrio entre línguas revela o desencontro entre formas de vida, representações do mundo e do trabalho a que é preciso dar renovada atenção.
Tal como Williams, no seu tempo, sabemos que as palavras trazem “conexões implícitas”, que configuram ou reconfiguram ações na sociedade. A realidade da guerra foi pródiga em demonstrá-lo: fala-se com palavras de guerra, na linguagem que configura, naturaliza, legitima e estabelece moldes dessa guerra. Quando o governo sionista de Israel animaliza o seu inimigo – “We are fighting human animals and we are acting accordingly” – dá espaço a uma exceção aos direitos ditos humanos, que deixariam de ter sentido e jurisdição ante um tipo determinado de pessoas. É o racismo de Estado, numa das suas mais acabadas expressões. Ele legitima-se, a par e passo, nas palavras de gabinete de comentadores/as, que passam a ser palavras de gabinete das pessoas que ouvem esses/as comentadores.
É claro que o problema não é a linguagem, mas é também inegável que, como assinalou Williams, as palavras são elementos do problema, tanto na sua escolha como no jogo da sua enunciação. É por isso que fazer a diferença, fazer diferente, “fazer o que nunca foi feito”, é também dizer diferente, fazer política de outra maneira; recusar com o mesmo afinco tanto as manigâncias da rede social quanto as novas instituições do burocratismo que são, afinal, formas de abreviar a democracia.
Façamos e falemos diferente.
Sair do medo
São tempos de medo. O medo é um péssimo companheiro, motor de más opções e de piores consequências. A politização do medo é um clássico expediente da direita, mas que não exclui nenhum quadrante político. É o medo que gera as políticas securitárias, que coloca os fundos para o armamento como prioritários face a orçamentos de saúde e de educação. É o medo que fomenta, mais tarde ou mais cedo, um interruptor ainda pior, que é o da raiva.
Em Portugal, se ontem foi o medo (do regresso de uma direita cada vez mais cadenciada pelo ritmo da extrema-direita) que alavancou uma inusitada maioria absoluta para o PS, arriscamo-nos a que a ira – pelas sucessivas más opções, pela lógica clientelar, pelos favorecimentos… – se estabeleça definitivamente como potenciador de voto. São sentimentos perfeitamente cartografados na história das ideias políticas, mas constituem-se, ao mesmo tempo, como margens de imprevisibilidade, de que as sondagens erradas são o mais visível sintoma. Trata-se do ponto cego de um comportamento massivo, que não tem contraponto racional. Só ressentimento desculpa a mentira desmascarada, a demagogia evidente, o apoucamento do discurso de ódio. Só isto não apenas redime, mas projeta a extrema-direita.
A raiva sucede ao medo, sem que o ultrapasse; desdobra-o. Raiva e medo são aliados numa perigosa conjugação, que parasita estes sentimentos em detrimento de uma política de propostas, de projetos, com uma feição emancipatória e orientada para um futuro de dignidade. É preciso interromper, mudar de ritmo, fazer e dizer diferente.
Agir politicamente contra o medo é dar a volta ao vocabulário da guerra, é falsificar o léxico das armas, em nome de uma confrontação estabelecida no campo totalmente distinto, que é o campo da democracia. Só ela constrói e perpetua um imperativo de paz e só ela permite dispor um confronto no tabuleiro da justiça. A história ensinou-nos a violência das imposições, o apolitismo do “indiscutível” – da TINA de Thatcher à Troika de Passos –, poderosos indutores do medo e da raiva.
O modelo social que proporcionou a democracia assenta num paradigma de vulnerabilidade. Somos frágeis e destrutíveis, pelo que a força do coletivo e os braços da solidariedade amparam rumos de vida. Estas vidas não têm medo, não devem ter medo: de envelhecer, de adoecer, de andar na rua com quem amam, de afirmarem quem são, como são, com quem estão.
Quando afirmamos uma democracia contra o medo, escolhemos também a firmeza de um futuro desmilitarizado nas palavras e nos atos, dizendo, na letra de Bogle e na voz de MacGowan que, para nós, já chega de medo e já basta de raiva.
Hoje, de uma vez por todas, nunca mais Waltzing Matilda!