O 14M do jornalismo português

Aline Flor, Delegada sindical do Público e vogal da direcção do Sindicato de Jornalistas

“Liberdade não se escreve sem jornalismo”, gritaram centenas de profissionais a 14 de Março, na primeira greve geral de jornalistas em mais de 40 anos.

A greve geral de jornalistas de 14 de Março, a primeira em 42 anos, foi um marco na história do jornalismo português contemporâneo. Centenas de jornalistas aderiram em massa ao protesto nacional por contratos justos, salários dignos e verdadeiras condições para exercer a sua liberdade editorial. Para fazerem jornalismo de qualidade.

As redacções de mais de 60 órgãos de comunicação social locais, regionais e nacionais ficaram totalmente paralisadas, de acordo com o Sindicato de Jornalistas (SJ), e registaram-se sérios constrangimentos noutras dezenas.

Houve ainda manifestações por todo o país que contaram com uma forte adesão, num sinal de união e solidariedade entre uma classe pouco habituada a lutar em causa própria.

Mas o que fica de uma greve histórica que quase parou, mas não totalmente, o fluxo de notícias?

Puzzle de vontades

O 5ºCongresso de Jornalistas, em Janeiro deste ano, sete anos depois da última reunião magna da classe, voltou a traçar diagnósticos amargos.

No rescaldo de uma primeira paralisação de uma hora em solidariedade com os jornalistas e trabalhadores do Global Media Group (que fizeram greve a 10 de Janeiro), a urgência de agir contra a degradação das condições de trabalho foi partilhada em cada um dos painéis, comunicações e corredores do congresso. Percebeu-se que se impunha convocar uma greve geral que chegasse a toda a classe.

No ano de celebração dos 50 anos do 25 de Abril, o mandato para convocar o protesto nacional  foi entregue ao Sindicato de Jornalistas sob a forma de uma grande moção, construída a partir de um equilíbrio particular de três moções (uma das quais do próprio SJ). A moção unitária foi aprovada por unanimidade no plenário do congresso.

As primeiras decisões – incluindo a data da paralisação, que acabaria por ser agendada para depois das eleições legislativas – foram entregues a uma comissão organizadora  que reuniu a direcção do SJ e os proponentes das outras moções da greve geral, assim como o presidente da comissão executiva do 5º Congresso, o jornalista Pedro Coelho. O grupo foi-se expandindo para incluir representantes de diferentes cidades, jornalistas de diferentes gerações, trabalhadores com diferentes perfis. Criou-se um movimento unitário que foi ganhando força até ao dia da paralisação.

A greve foi convocada com o apoio de outros sindicatos do sector. O Sindicato Nacional dos Trabalhadores das Telecomunicações e Audiovisuais (SINTTAV) e o Sindicato dos Trabalhadores de Telecomunicações e Comunicação Audiovisual (STT) também emitiram pré-avisos para 14 de Março, permitindo a repórteres e editores de imagem juntarem-se à greve. O Sindicato dos Meios Audiovisuais (SMAV) e o Sindicato Democrático dos Trabalhadores dos Correios, Telecomunicações, Media e Serviços (SINDETELCO) manifestaram solidariedade à luta dos jornalistas e apelaram a ações que tornassem a nossa luta mais visível. E as centrais sindicais CGTP-IN e UGT também expressaram apoio e solidariedade à luta por condições de trabalho dignas e em defesa do jornalismo.

Com a corda na garganta

Anunciada a data da greve, iniciaram-se as reuniões com trabalhadores em diferentes redacções. Faltava abrir portas. Recolher contributos. No final de Fevereiro, surgiu, enfim, a publicação do pré-aviso e do caderno reivindicativo. 

Os jornalistas exigem aumentos salariais em 2024 superiores à inflação acumulada desde 2022, a melhoria substancial da remuneração dos freelancers, a garantia de um salário digno à entrada na profissão e de progressão regular na carreira. 

Além de remunerações por trabalho excepcional como turnos, horas extraordinárias ou feriados, exige-se o fim da “precariedade generalizada e fraudulenta no sector”, denunciando o recurso abusivo a recibos verdes e contratos a termo. 

Outro dos cavalos de batalha da greve, que acicatou em particular jornalistas fora das grandes cidades, foi a exigência do cumprimento escrupuloso do Contrato Colectivo de Trabalho da Imprensa (que lhes garantirá finalmente salários dignos) e a generalização da contratação colectiva para o sector audiovisual e da rádio. 

Além disso, o caderno reivindicativo incluía questões estruturais, como a intervenção do Estado na garantia da sustentabilidade financeira do jornalismo ou a revisão das estruturas regulatórias da comunicação social e do jornalismo.

Por fim, ecoando um dos lemas desta greve – “A liberdade não se escreve sem jornalismo” -, exige-se condições humanas e materiais para a produção noticiosa, permitindo o cumprimento de princípios éticos e deontológicos.

Linha suspensa

Chegados a 14 de Março, o impacto nos órgãos de comunicação nacionais foi expressivo. Na Agência Lusa, a adesão à greve terá rondado os 90%, o que levou a direcção de informação a fechar a linha noticiosa logo a meio da manhã, alegando “respeito à greve decidida em congresso pelos jornalistas portugueses e na defesa da dignidade do serviço público prestado pela agência”.

O Diário de Notícias, onde dias antes da greve fora anunciado um despedimento colectivo de 24 profissionais, entre os quais oito jornalistas, foi o único jornal diário de referência cuja edição em papel não chegou às bancas no dia seguinte. Redacções como a da TSF, d’O Jogo e do Jornal de Negócios, assim como de revistas como Timeout, Caras ou Activa, ficaram totalmente paralisadas. A adesão à greve geral também teve um grande impacto em órgãos como a Visão (adesão de 90%), Jornal de Notícias (83%), Público (83%), Expresso (75%), Observador (75%), a delegação da SIC no Porto (75%) e a Rádio Renascença (38%).

Também na RTP houve uma adesão global muito significativa, sem noticiários nos vários canais da rádio pública (Antena 1, Antena 1 Açores, Antena 3, RDP África e RDP Internacional) durante 24 horas. A redacção de Lisboa da televisão pública paralisou em 85% e registou-se um forte impacto nas delegações da RTP.

A adesão em massa aconteceu apesar da acção das hierarquias, em várias redacções, para reduzir o impacto do protesto. Alguns jornalistas foram aliciados com horas extraordinárias ou dias de folga extra caso não aderissem à paralisação, havendo também recurso a estagiários e a trabalhadores a recibos verdes para substituir jornalistas em greve, assim como reforço de turnos, de acordo com denúncias ao Sindicato dos Jornalistas.

Grandes e pequenos

A adesão de dezenas de títulos da imprensa regional, incluindo várias rádios locais, foi essencial para o sucesso da greve geral. Estes jornalistas, em muitos casos com o apoio das direcções de informação, denunciam há muito a degradação das suas condições de trabalho e as dificuldades específicas de sustentabilidade financeira dos seus órgãos de comunicação. Aliás, ao fim de alguns dias ainda se iam descobrindo redacções que não publicaram notícias no 14M e cuja adesão não tinha sido contabilizada porque os meios apenas tinham anunciado no Instagram, e não ao Sindicato.

Também os media não tradicionais aderiram ao protesto, com redacções totalmente paradas, assim como rádios e jornais universitários, das que contam com jornalistas com carteira às redacções de jovens estudantes, que se juntaram aos protestos em solidariedade com os futuros camaradas.

No dia 14 de Março, centenas de jornalistas juntaram-se em concentrações por todo o país. Além das manifestações em Lisboa, com cerca de 500 pessoas, no Porto, onde se juntaram mais de 200, e em Ponta Delgada (70), organizadas por iniciativa do sindicato, houve mais de 60 pessoas concentradas em Coimbra e até mesmo em Faro, onde talvez o resultado das eleições legislativas tenha dado o impulso para a convocatória na véspera da greve, reunindo 30 jornalistas. Em Viseu e em Évora, duas concentrações espontâneas mostraram a força do apelo desta greve.

Uma greve que não para as notícias é uma greve que falhou?

Como se descreve uma greve geral em que apenas um jornal nacional não tenha sido publicado no dia seguinte e os canais generalistas tenham mantido os seus noticiários? “Eu queria que a greve geral tivesse sido um tremendo sucesso. Mas não foi”, escrevia-se, poucos dias depois, num grupo de WhatsApp com centenas de jornalistas.

Para muitos dos que leram a mensagem, avaliar o sucesso da greve pelo facto de ter havido noticiários ou por terem saído edições em papel, em vez de se reconhecer as adesões na casa dos 70% e 80%, entrará no território do despeito.

Das concentrações ficaram relatos de jornalistas veteranos a quem vieram lágrimas aos olhos. Comentários entre risos sobre directores que se viram obrigados a assinar notícias pela primeira vez em muito tempo. Depoimentos, no microfone aberto das concentrações, de redacções como a Agência Lusa, Antena 1, Diário de Notícias, Expresso, Jornal de Notícias, Público ou RTP. As lágrimas nos olhos de quem cantou “Grândola, Vila Morena” empunhando uma carteira profissional cujo valor vê, todos os dias, desvanecer.

Nos grupos do WhatsApp onde se partilharam materiais e experiências da greve, os avisos de jornalistas e directores da imprensa regional sobre os pequenos jornais, rádios e sites paralisados deixavam a mensagem clara de que há um Contrato Colectivo de Trabalho (CCT) por aplicar e dezenas de redacções sedentas de que finalmente algo mude para que se faça o jornalismo que se considera necessário.

Alguns repertórios de luta habituais em acções dos movimentos sociais entraram pela primeira vez nos horizontes dos jornalistas, muitos dos quais participaram na sua primeira greve. Em vários órgãos, camaradas juntaram-se à frente das suas redacções antes das concentrações para caminharem lado a lado, empunhando cartazes preparados em conjunto. 

Avaliar o sucesso de uma greve que, paralisando alguns OCS, não parou (totalmente) as notícias obriga a confrontar a classe com a sua própria armadilha: cobrir outras greves colocando fasquias sempre na linha do horizonte, aquela a que ninguém chega, em vez de olhar para as causas justas dos trabalhadores e pressionar as empresas que – na comunicação social como em tantas outras áreas – deveriam ser responsabilizadas.

E agora?

Para muitos jornalistas, em particular os mais experientes que testemunharam décadas de enfraquecimento sindical e degradação da união da classe, foi surpreendente a onda que se criou dentro de redacções, das maiores às mais pequenas, onde há tantos anos se diz que anda cada um por si. Pelo contrário, transbordaram para as ruas mesmo em cidades onde não havia nada programado.

Neste 25 de Abril, é provável que dezenas de jornalistas se juntem, organizados, às manifestações. Até lá, o trabalho continua e será preciso explorar repertórios de luta dentro das redacções: reactivando Conselhos de Redacção, elegendo Comissões de Trabalhadores e delegados/as sindicais, organizando plenários, passando a palavra à mesa do almoço ou junto da máquina de café.

São os e as jornalistas que vão determinar o que virá depois do 14M do jornalismo português. Mas uma coisa ficou clara: nada será como antes deste 14 de Março.