O acesso ao SNS “tem de ser reinventado”

Entrevista a Afonso Moreira, médico de saúde pública e organizador do Mais SNS


Porque é que o Mais SNS surge agora?

O Mais SNS surge agora por este ser um momento charneira da história do SNS tal como foi a sua fundação, com o acesso público à saúde. Neste momento esse acesso tem de ser reinventado, ou seja, nós estamos face a uma transformação na saúde em Portugal que está cada vez mais a reduzir o acesso aos cuidados de saúde. Isto através da sua privatização, do desinvestimento crónico e da saída de profissionais de saúde por desvalorização das suas carreiras. Essa desvalorização progressiva faz com que o setor privado cresça à custa do setor público.

Identificaste este momento como um “momento charneira”. Porquê?

O momento em que estamos é um momento pós-emergência de saúde pública – a pandemia. E foi neste momento que se tornou evidente que o SNS foi quem salvou o país. Se não tivéssemos um SNS gratuito e que permitisse sem qualquer encargo às pessoas terem acesso à proteção das suas vidas e dos seus entes queridos tinha sido um desastre completo. E essa memória está viva na cabeça das pessoas e é a memória que é preciso enaltecer para perceber que teremos outros momentos em que vamos precisar do SNS.

Porque é que o Mais SNS surge como um movimento cidadão?

Porque se juntou um grupo alargado de subscritores em torno de um manifesto que pretende ser unificador e que não pretende ter nenhum dono do ponto de vista de alguma organização que já exista e portanto agregue os esforços de todas essas organizações. Estamos a falar de organizações civis, sindicais, ou seja, dos trabalhadores que também são utilizadores do próprio SNS e é nesse contexto que se tem desenvolvido o trabalho do movimento, que tem uma estrutura democrática que é com discussão e espaço aberto que está a ser construído.

Falaste dos sindicatos e das organizações civis. Que papel é que têm na defesa do SNS e dentro do Mais SNS?

Todas estas organizações estão acima de tudo a apelar à participação da manifestação no dia 3 de junho em Lisboa. E estamos a falar dos sindicatos, de comissões de utentes de outras organizações, como por exemplo as associações que não são de utentes mas que agregam problemas específicos de grupos, como das pessoas idosas e reformadas. Mas também há outros grupos com que nós estamos em contacto e com quem vamos desenvolver a mobilização para o dia 3 de junho. Estamos a falar de todas as lutas que precisam de um SNS. Grupos da área pela defesa do clima, lutas feministas, de grupos de doentes que precisam dos cuidados de saúde que merecem. A luta pelo SNS é uma luta interseccional que agrega aqui todo esse bem comum que é a saúde.

Como é que estas outras lutas – feminista, LBTQI+, anti-racista – se articulam com o SNS?

O acesso não é simplesmente ter os serviços disponiveis. É também serem atempados e sentirmos confiança nesses serviços. Sabemos que se vamos a algum serviço e vamos ser discriminados, isso não é verdadeiramente ter acesso a esses cuidados. Há uma necessidade também de trabalhar estas questões dentro do SNS para que haja de uma maneira estrutural, de formação dos profissionais e da sua capacitação para saberem lidar com diferentes realidades. Com pessoas trans, com pessoas de todas as etnias, com pessoas com deficiência, com mulheres – que têm caraterísticas específicas e que necessitam de ter direitos reprodutivos.


No estado em que se encontra o SNS, como é que começamos um processo de regeneração e de inverter a lógica neoliberal?


Vivemos neste momento uma mudança no sistema de saúde que está a tentar ser implementado em Portugal. Estamos a falar de termos um sistema essencialmente de financiamento público e de prestação pública de cuidados e de isso querer ser transicionado para um modelo mais baseado em seguros, num modelo em que a prestação é privada e que poderá chegar eventualmente à total privatização dos cuidados de saúde em Portugal. O modelo bismarckiano, o modelo dos seguros e da prestação privada é o modelo da lógica neoliberal que tem sido nos últimos anos progressivamente implementado em Portugal. E é necessário que a esquerda se organize. Não é para voltarmos ao SNS de antigamente mas é com base no que foi a fundação do SNS levarmos o sistema de saúde português para um verdadeiro sistema do estilo beveridgiano, ou seja, do estilo de prestação pública e de financiamento público.

Depois da manifestação de dia 3, o que se segue para o Mais SNS?

O plano será certamente influenciado pela adesão à manifestação. Mas algo que certamente vai acontecer é que as pessoas que estão envolvidas – e que são cada vez mais – vão continuar a organizar-se cada vez mais e vão continuar a ocupar cada vez mais espaço. Ou seja, a manifestação não é o fim do movimento, é sim um passo importante para a sua afirmação e para fazer com que seja incontornável ter de debater estas políticas de saúde. Para que o que se disputa em Portugal seja soluções que são necessárias e não fait-divers repetitivos e circulares que na verdade não mudam nada na vida das pessoas.