A moção E, submetida à Convenção do Bloco, propõe uma mudança de política numa questão que não é menor: deixar de considerar que a Rússia de Putin é imperialista. Fá-lo de forma envergonhada, com o seguinte preceito: “Referências genéricas aos ‘imperialismos’ obliteram o papel hegemónico dos EUA e da NATO”. Aqui é tudo misterioso e as “referências” (quais?), “genéricas” (e se forem “específicas”?), aos “imperialismos”, “obliteram” (expressão finória que significa “fazer desaparecer”) o “papel hegemónico” dos EUA e Nato. A conclusão é clara: a esquerda só se deve “referir” ao imperialismo norte-americano.
Se se estivesse a discutir a invasão do Iraque, ou o bombardeamento e destruição da Jugoslávia, ou o apoio a Netanyahu, a frase seria contextualizável (mas o mesmo já não se poderia dizer do Afeganistão, a Rússia invadiu esse país antes de os EUA o terem feito, lembram-se?). O problema é que o texto se refere à invasão da Ucrânia. Portanto, o que nos é proposto é que, a propósito da Ucrânia, a esquerda “oblitere” o imperialismo de Putin, pois alegadamente tal reduziria a perceção do “papel hegemónico” dos EUA.
É uma proposta bizarra por dois motivos. O primeiro é que Putin repetiu com todas as letras que foi em nome do seu imperialismo que invadiu a Ucrânia. Dizia ele dois dias antes da invasão começar: a Ucrânia “não é só um país nosso vizinho. É parte inalienável da nossa história, da nossa cultura e do nosso espaço espiritual”, e, portanto, deve ser reintegrada no território que era o do império czarista. E, para que não ficasse a menor dúvida, responsabilizou Lenine pelo erro da independência da Ucrânia: “A Ucrânia moderna foi criada pela Rússia ou, para ser mais preciso, pela Rússia bolchevique, comunista. Este processo começou quase logo a seguir à revolução de 1917, e Lenine e os seus camaradas fizeram-no de modo muito prejudicial para a Rússia, separando e dividindo o que era historicamente a terra russa”. Assim sendo, concluiu, aceitar a autodeterminação “foi pior do que um erro”. E esse erro corrige-se com a guerra. Ora, a guerra para a expansão territorial e a submissão de uma nacionalidade (estamos de acordo sobre o facto de a Ucrânia ser uma nacionalidade, não estamos?) é uma das características do imperialismo, o que, já agora, não convém “obliterar”.
O segundo motivo é independente da forma como Putin apresenta o seu projeto imperial. De facto, podia disfarçá-lo, o que escolheu não fazer, e isso não alteraria a realidade. A Rússia é uma economia capitalista, cujos processos de acumulação de capital são dirigidos pela burguesia e pelo estado coercivo que utiliza e, ao procurar expandir-se, seja por razões políticas ou económicas, usa os recursos militares da sua força imperial. Essa burguesia foi constituída pelos processos de privatização de gigantescos recursos minerais e do sistema financeiro, conduzindo a uma desigualdade social mais intensa do que em qualquer país europeu. Um regime capitalista que invade outro país para se apropriar da sua produção e submeter a sua população não é um gato pardo no telhado, é mesmo um imperialismo.
Escrevia Lenine – o tal responsável pela independência da Ucrânia, “pior do que um erro” – e da forma categórica que se lhe conhece, que “O imperialismo é o capitalismo no estádio de desenvolvimento em que a dominação dos monopólios e do capital financeiro é estabelecida; em que a exportação de capitais assume grande importância; em que começou a divisão do mundo entre os monopólios internacionais e a divisão de todos os territórios do globo entre os grandes poderes capitalistas está completa”. É, nesta definição, um sistema que produz uma divisão de territórios. O sistema imperialista é uma disputa entre imperialismos. A ideia de um único imperialismo foi por isso combatida por Lenine: contra Kautsky, que inventou um “ultra imperialismo” que, segundo ele, conduziria à “exploração conjunta do mundo pelo capital financeiro internacionalmente unido” e, portanto, produziria uma unificação hegemónica, Lenine mostrou que a guerra entre potências imperialistas era a realidade do seu tempo. Não se pode compreender a Primeira ou a Segunda Guerra Mundial sem entender o conflito entre imperialismos. “Obliterar” que há vários imperialismos, alguns subalternos e outros concorrenciais, é enterrar a cabeça na areia. E, já agora, se proibimos as tais “referências genéricas aos imperialismos” esquecemos os nossos próprios imperialismos europeus, o que parece não incomodar os autores daquele preceito. Mesmo que disfarçado com uma “obliteração”, o campismo é o lugar que a esquerda não aceita.