O capitalismo rentista e o Estado

Desde os seus primórdios que a economia enquanto ciência se preocupa em compreender de que forma se pode fomentar o crescimento económico através do reinvestimento em atividades produtivas em detrimento de outras, as improdutivas, que deveriam ser limitadas.

Na teoria do valor da economia política clássica, as rendas são os valores pagos aos donos dos ativos necessários aos processos produtivos, mas que têm custos negligenciáveis de produção. Os rendimentos originados na propriedade da terra e na maior parte do setor financeiro são por isso rendas, porque não contribuem para o aumento da riqueza geral e são apenas uma forma de transferência de fundos de umas atividades para outras. Com a preocupação de que o aumento das rendas levaria a níveis de investimento e salário desadequados, e por sua vez à estagnação e à desigualdade económica, clássicos como Smith, Ricardo e Mill defendiam que a maior parte dos impostos do Estado deveria advir dos proprietários de terras que lucravam com o desenvolvimento económico sem nunca contribuir para ele. Marx, por outro lado, defendia que o rentismo com base no aumento da procura da terra e do seu preço era parte inalienável do modo capitalista de produção, e que por isso a regulação do sistema através dos impostos seria impossível. A alternativa marxiana é a socialização das rendas através da nacionalização.

Keynes clarifica a demarcação entre atividades produtivas e não produtivas com o desenvolvimento da tese do rentismo financeiro, composto por uma classe parasitária que lucra com o controlo de um recurso escasso – o dinheiro – e que extrai riqueza das empresas e dos trabalhadores sem em nenhum momento criar valor ou emprego. Keynes aponta que, ao contrário da terra, não existe nenhuma razão intrínseca para a escassez de capital. Por isso, uma política monetária e de crédito adequada, com taxas de juro próximas de zero, teria o poder de “eutanasiar os rentistas”.

Hoje, as economias modernas vêm-se cada vez mais estranguladas com rendas que desviam importantes recursos da economia real. Mas não são inevitáveis – a sua manutenção e expansão depende de um quadro institucional ditado pelas políticas do Estado. As rendas da propriedade da terra e do imobiliário e as rendas financeiras andam de mãos dadas e continuam a ser centrais no capitalismo rentista. A liberalização do sistema bancário mundial nos anos 80 e 90, que culminou com o fim da separação obrigatória da banca comercial e de investimento, promoveu a expansão do crédito e o investimento especulativo no mercado imobiliário, potenciando um crescimento de preços do imobiliário a um ritmo muito maior que o do crescimento da remuneração do trabalho. Esta situação tem conduzido ao endividamento das famílias e a uma grave crise da habitação em muitas cidades do mundo. Foram as políticas dos estados que, imbuídos pela ideologia da “sociedade de proprietários” e pelo lobby do setor financeiro, criaram as condições esta espiral de extração de renda chegasse a este ponto. Em Portugal, a liberalização financeira, a perspetiva da integração na união monetária, e a redução das taxas de juro nos anos 90 levou a que grande parte da expansão do setor bancário se devesse à construção e à aquisição de imobiliário. Os planos de crédito bonificado, os regimes fiscais apelativos para investidores imobiliários, a privatização de partes do parque habitacional público, são outros fatores que contribuíram para esta situação. Hoje, o estado continua a garantir rendas aos proprietários, que são subsidiados diretamente através dos programas de renda acessível, em que o erário público suporta a diferença entre a renda apoiada e a renda “de mercado” e isenta os senhorios de IRS/IRC e IMI (talvez seja a este tipo de garantias que Pedro Passos Coelho se referia, ao defender um Estado-Garantia em detrimento de um Estado-Prestador).

Existem alternativas. Em economias avançadas como as da Coreia do Sul e de Singapura, a esmagadora maioria do território é detido ou controlado pelo estado. As rendas da terra são por isso socializadas e podem ser usadas na promoção da habitação pública e acessível. No que concerne às rendas financeiras, é imprescindível que as atividades de crédito e

investimento voltem a estar subjugados à democracia e aos interesses dos estados, tornando-se úteis na persecução de objetivos económicos que beneficiem a maioria. Para isso, é necessária a re-regulação do sistema bancário e o controlo público e ativo do setor.

Quando Adam Smith falava de mercados livres, referia-se acima de tudo a mercados livres de rendas. Ficaria, portanto, admirado quando os seus autoproclamados discípulos liberais invocam o seu nome com a intenção de manter e intensificar um regime rentista com base no privilégio. O meu desejo para este novo ano é que possa voltar a descansar em paz.