O combate à pobreza de escolha em escolha

Não leio o mundo pelos buracos de fechadura de chaves dicotómicas, a realidade social – e a “natural” também, já agora – congrega sistemas complexos de navegação difícil para a qual todos os mapas e bússolas podem ser convocados para a construção de sentidos úteis e narrativas capazes. O que não é o mesmo que dizer que quaisquer dois elementos serão congruentes entre si, e no que toca à definição de pobreza e ao modo como escolhemos conhecê-la – construí-la como conceito e narrá-la como história (infame) das sociedades humanas – há encruzilhadas nas quais temos que nos deter e fazer escolhas claras.

E uma das escolhas que importa fazer é esta: escolhemos ficar pela definição de pobreza como medida do rendimento disponível para garantir a sobrevivência em dignidade? Hoje essa medida traduz-se numa linha – está em situação de pobreza quem esta abaixo dessa linha, quem dispõe de rendimentos inferiores a 60% do rendimento médio. Combatemos a pobreza diminuindo o número de pessoas abaixo dessa linha. Ou escolhemos assumir de facto uma definição multidimensional que abarca a perceção de bem-estar e qualidade de vida, que se funde com a de exclusão social pela centralidade da pertença, da participação efetiva e satisfatória nos diversos sistemas interconexos que constituem as nossas sociedades? Neste caso, o combate à pobreza travar-se-ia por todos e todas nós, tudo em todo o lado ao mesmo tempo, orientando a ação no presente na emergência e no futuro na prevenção. Soa a realidade distópica porque, tal como a vejo, não é efetivamente deste tempo e deste lugar.

Se o ponto de partida e chegada para este texto fosse um exercício académico, é certo que estaria a pregar para convertidos e seria mais um texto de organização de conceitos e suas consequências para ação no combate à pobreza. Não vamos por aí. Encruzilhada #1 superada, escolha feita, prossigamos.

Vamos antes pela apreciação do que nos oferece o espaço mediático por estes dias, navegar pela espuma dos números para ver o que sabemos sobre pobreza e combate à pobreza, e como escolhemos saber o que sabemos.

No final de maio deste ano saímos do Fórum Social do Porto com um reafirmado alinhamento das políticas nacionais com o Pilar Europeu dos Direitos Sociais (PEDS) e o seu Plano de Ação, que é o roteiro lançado pela Comissão Europeia para a aplicação dos 20 princípios sobre os quais o PEDS assenta. Os princípios agrupam-se em 3 grandes domínios: proteção e inclusão sociais, igualdade de oportunidades e acesso ao mercado de trabalho, e condições de trabalho justas. São os 3 alicerces do que será uma “Europa social forte [que] dá prioridade às pessoas e ao seu bem-estar”, cumprindo-se a “promessa de prosperidade partilhada” que se materializa num novo “conjunto de regras sociais” para a ação política e económica dos Estados-membro (in https://ec.europa.eu/social/main.jsp?catId=1607&langId=en)

As promessas são as mesmas que presidiram à construção da União Europeia, é um reboot musculado do melhor do pensamento europeísta, agora com um prenúncio de regulação europeia das políticas nacionais de proteção social. O nosso novo conjunto de regras comporta premissas que nos são familiares desde o século XVIII: é pelo livre acesso ao trabalho, pelo salário, que ganhamos acesso aos bens e direitos sociais, e se não trabalhamos por impedimento socialmente validado temos direito a proteção social – funda-se a pobreza assistida por via de políticas sociais do Estado, elas próprias excludentes do coletivo dos “maus pobres”, os que de algum modo não são definidos pela sua relação normativa com o trabalho e, portanto, não são elegíveis para usufruto dos direitos sociais plenos.

Aí estão os nossos alicerces para o Pilar Europeu dos Direitos Sociais, com raízes fundas num passado que continua a determinar os frutos que podemos esperar colher das políticas sociais que construímos para hoje. Se o que nos move coletivamente é o bem-estar das pessoas, resta-nos antever que nos próximos anos as pessoas que serão consideradas para a partilha da prosperidade têm que caber todas no molde do século XVIII. Que é viés que não tenha aqui em consideração que há hoje muito mais alargado acesso ao trabalho do que no século XVIII? Não não é particularmente relevante depois da escolha que faço aqui na minha encruzilhada #2: se as pessoas com quem se “partilha a prosperidade” não forem as pessoas todas, diferentes mas iguais em direitos, este Pilar não só não sustentará como será moralmente insustentável, e passo a ilustrar.

Como vamos saber se o Plano de Ação do PEDS se cumpriu? O mapa que usamos para chegar ao destino é uma folha de Excel e seguimos a estrela polar das met(ric)as – saberemos que estamos a concretizar a Europa social se em 2030, na UE:

– tivermos diminuído em, pelo menos, 15 milhões o número de pessoas em risco de pobreza;

– pelo menos 78% da população entre os 20 e aos 64 estiver empregada;

– pelo menos 60% das pessoas adultas participar anualmente em ações de formação.

A Comissão Europeia considera estas metas “ambiciosas mas realistas” (in https://ec.europa.eu/social/main.jsp?catId=1607&langId=en).

Dados publicados em junho de 2023 pelo EUROSTAT dão conta de que na UE, em média, 21,6% da população está em risco de pobreza. São 95,3 milhões de pessoas. Saltamos para 2030, e assumimos que atingimos a ambiciosa meta: na UE não haverá mais do que 80,3 milhões de pessoas em risco de pobreza. É este o número aceitável (porque aceite) de pessoas pobres na concretização da Europa social.

E não nos deteremos muito a avaliar se haverá ou não inclusão, satisfatória para o seu bem-estar, das pessoas adultas noutros sistemas que não no mercado de trabalho, ou se pelo menos 93% das pessoas adultas com mais de 65 anos aprecia positivamente a sua qualidade de vida, ou se pelo menos 87% das crianças e jovens participa anualmente em processos de criação cultural ou de tomada de decisão nas suas comunidades, ou se temos todos e todas cuidados de saúde primários assegurados, e podia continuar sem esgotar todas as dimensões em que revela, instala e se deveria combater a pobreza, para além da via estreita e exclusiva de acesso efetivo aos direitos sociais plenos mediante avaliação de mérito da nossa relação com o mercado de trabalho.

Em Portugal, a partir da subscrição do Plano de Ação do PEDS, definiu-se uma Estratégia Nacional de Combate à Pobreza alinhada com o novo conjunto de regras sociais para os Estados-membro. Assim, e em coerência com o caminho feito no PEDS, num passo enuncia-se uma abordagem que “vai muito além da definição de pobreza enquanto privação de recursos monetários, evitando as abordagens centradas unicamente sobre a análise do ponto de vista monetário e que procuram fazer depender a redução da pobreza unicamente do crescimento económico”, e professa-se uma “visão mais ampla da pobreza, assumindo a pobreza como fenómeno complexo e multidimensional, o qual constitui violação dos direitos humanos e de cidadania e que exige uma atuação integrada das diferentes áreas setoriais no domínio da intervenção pública”, e no passo seguinte estabelecem-se met(ric)as nacionais para 2030:

– reduzir a taxa de pobreza monetária para o conjunto da população para 10 %, o que representa uma redução de 660 mil pessoas em situação de pobreza;

– reduzir para metade a pobreza monetária no grupo das crianças, o que representa uma redução de 170 mil crianças em situação de pobreza;

– aproximação do indicador de privação material infantil à média europeia, em pontos percentuais;

– reduzir para metade a taxa de pobreza monetária dos trabalhadores pobres, o que representa uma redução de 230 mil trabalhadores em situação de pobreza;

– reduzir a disparidade da taxa de pobreza dos diferentes territórios até ao máximo de 3 pontos percentuais em relação à taxa média nacional.

Dando a volta aos números a partir das estatísticas recentes do EUROSTAT – que apontam que em Portugal 20,1% das pessoas está em risco de pobreza – não há um compromisso para, até 2030, tirar da pobreza outras tantas 660 mil pessoas, nem outras tantas 170 mil crianças, nem outras tantas 230 mil pessoas trabalhadoras. E nada se sabe do que se pretende conseguir especificamente em relação às mais de 450 mil pessoas com 65 ou mais anos em risco de pobreza. E não se vislumbram metas tão abrangentes quanto os conceitos de partida, tão ambiciosas quanto as premissas para a ação política em preâmbulo: as metas podiam ser estas com um entendimento de pobreza reduzido a medida do rendimento disponível.

Havia de fazer parte do nosso novo conjunto de regras sociais que não se podem travar combates desapaixonados, que as metas ambiciosas não podem ser realistas, e que se são realistas não é de combate que se trata mas sim de gestão, e perdoe-me que tem na gestão a sua paixão.

Porque nunca se tratou de combate mas sim se gestão, hoje, aos públicos clássicos – pela sua “vulnerabilidade” enquanto qualidade intrínseca (os públicos-alvo das múltiplas estratégias e planos de inclusão social em vigor) – da proteção social moderna, e aos públicos historicamente fiéis da proteção social conferida aos que não trabalham por motivos socialmente validados (aqueles para os quais ficam por consolidar os alicerces do acesso ao mercado de trabalho) somam-se as pessoas trabalhadoras em situação de pobreza (aquelas para às quais falhou o alicerce das condições de trabalho justas).

Promovendo a gestão da pobreza para que se mantenha coeso q.b., o sistema mantém-se funcional. A setorialização das respostas específicas para as pessoas e grupos vulneráveis a, ou em, situação de pobreza – como se não fossemos todos e todas vulneráveis por referência a um ou outro critério, e num ou noutro sistema desde que este seja capaz de tomar as nossas características e circunstâncias por défices face aos seus inquestionáveis pressupostos de acesso, pertença e participação – continua a ser um dispositivo central na manutenção de uma organização social e económica que convive bem com a vulnerabilização e com a pobreza que gera, e que gere e domestica (i.e., torna doméstica, está connosco em casa, faz parte da família) pela institucionalização da proteção social como setor especializado das políticas do Estado. 

Compromisso no combate à pobreza seria escolher a avaliação clara, transparente, programada, sistemática – apaixonada, vá! – dos efeitos e dos impactos de toda e qualquer política do Estado no bem-estar das pessoas – efetivamente definido com toda a sua multidimensionalidade, contemplando e validando as dimensões subjetivas e culturais que comporta; estimando primeiro e medindo, durante e depois, os efeitos e impactos diferenciais das políticas nos diferentes grupos sociais tomando em consideração as variáveis que traçam as linhas entrecruzadas e cumulativas da exclusão social.

Fazer escolhas inequívocas em cada decisão política, sustentada em conhecimento útil e capaz de abarcar a complexidade, escolher sem meias tintas o caminho do combate à pobreza em cada encruzilhada, os dois pés no mesmo caminho. Apesar das escolhas e escolhos do caminho, vamos sempre a tempo de escolher, daqui para a frente, dar uma no cravo e a outra também.