O combate às opressões não se fará sobre dogmas

Vivemos uma fase de rigidez moral de ideias e costumes na sexualidade, de ataque ultraconservador, que também tem expressões no campo da esquerda e de movimentos sociais – o proibicionismo ou a transfobia são unicamente dois dos seus aspetos mais visíveis. É inegável que tem havido uma evolução social que nos coloca, mais do que nunca, a falar daquilo que era interdito e que coloca no centro desses debates quem normalmente lá não estava. Muitas das pessoas que sofrem discriminações já não toleram comportamentos e ideias violentas e opressivas (e muito bem). Dito isto, há um limite a partir do qual somos nós intolerantes mesmo quando lutamos pela tolerância e pelo respeito? Quando é que a nossa vontade de mudar a sociedade se torna cega às dinâmicas humanas e, por esse motivo, também autoritária? É fácil deixarmo-nos contaminar pelo conservadorismo?

O conservadorismo religioso restringiu os corpos durante séculos. E, apesar dos progressos no discurso sobre corpo e sexualidade, continua a persistir uma dimensão moralizante que julga e subjuga as escolhas das mulheres – como tem ficado claro com os vários retrocessos legais neste campo. Isto não acontece sem resistência, já que o feminismo tem ganho um lugar de visibilidade e colocado na ordem do dia debates como a interrupção de gravidez – com vitórias expressivas em países da América Latina apesar da ameaça de um recuo civilizacional nos EUA – mas também a violência ginecológica, o direito ao espaço público, a masturbação feminina e, como na história que até aqui nos traz, a libertação sexual.

Como sempre reivindicou o movimento feminista, é necessário combater o assédio e a objetificação dos corpos, como parte da luta pela liberdade e autodeterminação sexual. É não só necessário como possível. Esse combate fica a meio quando as decisões e a liberdade de uma mulher são diminuídas pelo discurso paternalista que a retrata como vítima a ser protegida. Um exemplo claro é o da crescente vaga proibicionista, mas não só. De dia afirma-se que o corpo é da mulher, à noite critica-se a mulher que faz twerk ou aparece despida numa fotografia. Julga-se que se auto-objetifica, como se não houvesse mundo além do olhar masculino. Ou como se o corpo fosse novamente território tabu e a sexualidade fosse em si um campo violento. E isto manifesta-se de vários modos. A liberdade não se fará pela imposição de novos dogmas indiscutíveis. Nem pelo punitivismo medieval que, mascarado de evolução, é retrocesso. A imposição de um padrão do olhar ou da perceção limita a expressão autónoma da mulher e o seu desejo, que é também a forma da sua liberdade. 

Devemos voltar a descer a saia até ao tornozelo, abotoar a camisa até cima e até tapar o cabelo porque é símbolo de lascívia e a simples ideia de atrair desejo é uma violência? Mesmo que seja uma caricatura grosseira, desenvolver juízo conservador sobre os hábitos e os desejos de mulheres tem um só nome: machismo. E usar as lutas pela liberdade para impor códigos de conduta moral tem outro: o puritanismo.

O contrário de objetificação sexual não é supressão sexual. Podemos obliterar tudo o que tenha alguma ligação ao patriarcado, ocultar a dominação invisibilizando as suas formas, guetizar quem não aja ou fale da mesma forma que nós, ou, pelo contrário, podemos e devemos criar as formas da vida que se emancipam dessas prisões, e essa é a batalha contra o assédio e a violência sexual, sem tréguas. É por essa batalha que afirmo o valor do desejo. Afirmar o desejo e lutar contra o puritanismo que o degrada é um ato político. A batalha pelo consentimento e pelo respeito entre pessoas é parte do anti-puritanismo, é uma afirmação do desejo e da liberdade. 

Abdicar de estar nesses campos confusos que são a linguagem e o corpo no mundo dos mortais é abdicar da política e de construir mundo com outras pessoas. É a receita para o isolamento, para o tabu, para o virtuosismo. A linguagem é complexa, bem como as interações humanas. Há nessas interações prazer e desconforto, surpresa e reconhecimento, incompreensão e descoberta, interpretações e invenção, e só o puritanismo pode querer proibir a diversidade humana. Estaríamos condenadas a falar-nos como chatGPT. 

Desprezar o ato ou a palavra que não corresponda à expectativa que criámos arrisca-se a ser securitarista e até classista, é um risco para a energia das relações humanas e para a defesa política da liberdade entre iguais que é o património do feminismo e da esquerda. Só nessa afirmação de liberdade combateremos e venceremos a opressão e o abuso. Vivemos num mundo de contradições e não as discutimos com pézinhos de lã ou deixando elefantes na sala. Enganamo-nos, erramos, corrigimos, aprendemos, vivemos. E o feminismo dispensa regras de etiqueta. Construiu-se contra elas.