O inverno europeu
João Bernardo Narciso
O inverno está a chegar, e com ele chega a promessa de um agravamento da crise energética que vivemos. O cenário de interrupção total de fornecimento de gás russo parece cada vez mais plausível, com a suspensão da operação do gasoduto Nord Stream 1 no início de setembro e com a chantagem russa que ameaça mais interrupções no caso do não levantamento das sanções. Este cenário vem na sequência de uma grande redução da dependência de importações de gás da Rússia – cerca de 40% antes da invasão à Ucrânia, hoje reduzida a 9%. No mesmo sentido, o embargo europeu ao petróleo russo entrará em pleno vigor até ao fim do ano.
Face a um futuro sem hidrocarbonetos russos e a uma pressão dos preços recorde da eletricidade que é insustentável para as famílias e para as empresas e já não pode ser ignorada, a Comissão Europeia preparou uma resposta.
Uma das principais medidas apresentadas pela Comissão Europeia é a da imposição de um teto máximo nas receitas da produção de energia a baixo custo. Atualmente, os preços da eletricidade na Europa são definidos pelo custo da tecnologia marginal, ou seja, é o custo da central mais cara a que é necessário recorrer para satisfazer a procura que define os preços de todo o mercado. Assim, os produtores “inframarginais” – aqueles que produzem eletricidade a um custo muito menor do que o preço estabelecido pelo mecanismo, como é o caso das renováveis e da nuclear – conseguem obter enormes lucros.
A proposta da comissão é a de que as receitas angariadas com a imposição do teto máximo sejam redistribuídas pelos consumidores. Na prática, esta é uma proposta de remedeio para uma conjuntura excecional e que não altera de forma estrutural o mecanismo de definição de preços, algo que é reivindicado por vários países, nomeadamente pela Grécia, cujo governo apresentou uma proposta de separação do mercado energético em dois: um para as renováveis e outro para os combustíveis fósseis.
Outra medida apresentada é a da aplicação de um imposto sobre os lucros extraordinários do setor dos combustíveis fósseis. A eficácia desta medida dependerá da forma como definirá aquilo que é um lucro extraordinário. Antes da comissão, já vários governos tinham anunciado e operacionalizado diferentes políticas de tributação de lucros extraordinários e com diferentes níveis de ambição. O governo espanhol, por exemplo, anunciou um imposto a aplicar ao setor energético e à banca, e que incidirá não só sobre aquilo que é considerado como “lucro extraordinário”, mas sobre toda a receita dessas empresas. Itália (cujo imposto anunciado terá efeitos retroativos), Bélgica, Grécia e Reino Unido são outros exemplos de países que também se anteciparam nesta medida.
Finalmente, a Comissão estabelece objetivos de redução da procura de eletricidade, em
particular nas horas de pico. Governos de países como a Espanha e a Alemanha tomaram já medidas concretas neste sentido, como o estabelecimento de limites mínimos e máximos das temperaturas dos equipamentos de ar condicionado, a obrigatoriedade do fecho das portas de estabelecimentos comerciais, o fim da iluminação de montras e de monumentos e proibição do aquecimento de piscinas privadas.
Algumas destas medidas são há muito reivindicadas pela esquerda. Sendo capazes de contribuir para um aliviamento dos preços da eletricidade, têm muito pouco de estrutural e não resolverão por si as crises por que passamos. Para isso é necessário romper com dogmas de mercado, e promover o investimento público e o controlo democrático do setor energético.
No entanto, podemos servir-nos destas propostas da insuspeita Comissão Europeia para outros exercícios de raciocínio político. Desmascaram um Partido Socialista obcecado por uma inflexibilidade orçamental que atrofia o país, e que é tantas vezes ultrapassado pela esquerda por governos ditos de direita e pelas próprias instituições europeias, acabando por atuar in extremis e a reboque de outras forças – como no caso do mecanismo ibérico de eletricidade ou mais recentemente num hipotético imposto sobre lucros extraordinários.
Colocam a nu a fragilidade de uma série de pressupostos económicos sobre os quais a política europeia se tem baseado. Como aconteceu aquando crise da COVID-19, cuja resposta europeia incluiu a suspensão de regras orçamentais como o limite do défice, estas medidas põem em causa mecanismos e preceitos económicos que mais uma vez provam estar desligados da realidade e não ser capazes de responder às necessidades dos europeus. mostram que é possível fazer muito mais, se houver vontade política e se se levarem os desafios do nosso tempo a sério. Aquilo que ontem era blasfémia, hoje está no domínio do possível.