
O pacotinho e a defesa dos rendimentos do trabalho
Daniel Carapau e José Ricardo
Dez anos após a troika e o governo PSD/CDS, e em plena maioria do PS, vemos a inflação, em vez da austeridade, a provocar a maior queda de salários reais das últimas décadas. Neste texto iremos abordar os efeitos da inflação no campo do trabalho e as inadequadas políticas que o Governo tem vindo a adotar, preferindo dissimuladamente impor uma narrativa falsa de que tudo está bem assim.
Quem mais perde com os efeitos da inflação, segundo Vicente Ferreira, são “a grande maioria dos trabalhadores e pensionistas, cujos rendimentos não aumentaram na mesma proporção do nível geral de preços”. Assim, estando apresentado o programa do Governo “Famílias Primeiro”, podemos concluir que o essencial para o Governo continua a ser a narrativa das “contas certas”, a instalação de uma austeridade disfarçada e o lançamento de um debate envenenado quanto à sustentabilidade da Segurança Social.
As oito medidas apresentadas pelo Governo foram feitas com muito tempo de atraso em relação à maioria dos parceiros europeus. Com este atraso, a fatura da inflação tem sido paga pelos trabalhadores e pensionistas, que este ano já vão perder um mês de salário. Este conjunto de medidas é tardio e curto em comparação com outros países europeus, e esconde um corte de mil milhões de euros no sistema de pensões a partir de 2024.
Ao não tomar as medidas que podiam de facto compensar a inflação, como aumentos intercalares do salário mínimo nacional, dos salários da função pública e das pensões, o Governo está a assegurar que existirá em 2022 uma perda de poder de compra para quem trabalha equivalente a um salário, enquanto os pensionistas perderão cerca de meia pensão este ano e outra meia em 2023, ao que acresce o corte permanente a partir de 2024.
A maioria absoluta fez o PS abandonar a recuperação, ainda que parcial, de rendimentos – que nunca incluiu a revisão das normas laborais impostas pela troika – e abraçar o empobrecimento de quem trabalha. Com uma possível recessão ao virar da esquina, tudo se conjuga para que à sua chegada voltaremos a assistir ao crescimento do desemprego e muitas famílias a braços com a impossibilidade de pagar as despesas básicas, incluindo a renda da casa ou o empréstimo para habitação (com juros sempre a subir durante 2023). Isto num contexto socioeconómico em que 22,4% da população se encontra em situação de risco de pobreza ou de exclusão social.
Enquanto permite a queda livre dos salários reais, António Costa acena aos trabalhadores com duas iniciativas: a “agenda do trabalho digno” (ATD) e um “acordo (na Concertação Social) para a competitividade e rendimentos”. Quanto à primeira, a “agenda” não mexe no essencial do desequilíbrio de forças entre patrões e trabalhadores que as leis laborais devem corrigir. Pelo contrário, mantém na lei o essencial das normas que permitem a generalização da precariedade e estende a desregulação do trabalho, que já existe no caso do transporte individual, às restantes gigantes das plataformas digitais. Isto depois de, na versão inicial da ATD, em 2021, ainda num contexto minoritário, o Governo ter proposto mecanismos para a celebração de contratos de trabalho diretamente com as plataformas.
No que toca ao Acordo na Concertação Social, que Costa garante vir a ser a força motriz para o aumento do peso dos salários no PIB, quem acredita que os patrões se irão comprometer a subir salários acima da inflação enquanto o Governo pretende fazer o oposto em relação à função pública? Quando a inflação afeta os preços de tudo menos do trabalho, não deveria o Governo aumentar os salários reais dos funcionários do Estado, pressionando assim o setor privado a acompanhar esse aumento? Costa diz que não. Mantém apenas o aumento de 2% e deixa assim a negociação com o patronato encaminhada para promessas de benefícios fiscais, que não garantem a subida dos salários. Uma das prendas aos patrões foi já pré-anunciada pelo Ministro da Economia: um corte “transversal” no IRC, ou seja, redução de impostos para todas as empresas.
Se a palavra dada fosse mesmo palavra honrada, o primeiro-ministro já teria tomado medidas que verdadeiramente compensassem os efeitos da inflação.. Pelo contrário, o Governo pretende mexer nas leis laborais para deixar tudo na mesma, prometendo dignidade sem perspetiva nenhuma de a garantir. Assume também que irá cortar (ou deixar que se diluam) salários e pensões reais durante pelo menos 2 anos consecutivos. Cabe à esquerda política e ao mundo organizado do trabalho combater a atual maioria em nome dos rendimentos de quem trabalha e de quem mais está desprotegido perante esta nova crise.