O populismo penal no Chega

O embuste como método, o medo como instrumento, o poder como objetivo

Populismo penal e punitivismo

O populismo penal, ou populismo punitivista, baseia-se na lógica de que penas mais duras, mais longas ou mais drásticas terão um efeito dissuasor nos potenciais criminosos e com isso diminuirão a taxa de criminalidade na sociedade. É uma lógica simples, que a maior parte das pessoas que não comete crimes percebe, e por isso é tão apelativa entre movimentos populistas que procuram soluções simples para questões complexas. Envolve quatro elementos centrais – os políticos, o público, os meios de comunicação social/redes sociais e os agentes da justiça – e uma fonte de energia que faz funcionar toda esta máquina: a política do medo.

Para além desta prática punitiva baseada num agravamento penal, o populismo penal é sobretudo um discurso punitivista que procura legitimação através do medo e da insegurança, explorado, dramatizado e difundido pela comunicação social tablóide, utilizado sobretudo por políticos de extrema-direita para aprofundar uma agenda securitária e autoritária (caracterizada pela absoluta ineficácia preventiva das suas medidas), e para captar votos prometendo que se vai resolver o problema social abordado em cada momento, ao sabor dos acontecimentos ou da agenda mediática.

Assim, a legislação produzida é muitas vezes irracional dentro do quadro legislativo mais geral, pois as leis são propostas casuisticamente, sem preocupação de as inserir no conjunto do sistema legislativo penal, que obedece a princípios gerais em função do valor que a sociedade quer atribuir aos diferentes bens e à punição de comportamentos que os ferem. É uma legislação que prevê punições desproporcionais e sem efeito, destinadas apenas a criar a sensação entre o público de que está perante políticos corajosos e implacáveis a resolver as causas dos seus medos e inseguranças. Ao ser comandada pelos medos e inseguranças, e proposta por políticos sem escrúpulos, a legislação produzida pelo populismo penal pode mesmo ser discriminatória e gravemente lesiva de grupos específicos, ao sabor dos sentimentos e representações sociais do público em geral ou do eleitorado particular que o político procura agradar. Assume muitas vezes um carácter panfletário, seja pela difícil operacionalização, seja por destinar-se meramente a um efeito simbólico, sendo essa legislação aprovada devido ao seu impacto na opinião pública e não à sua eficácia efetiva na redução da criminalidade.

É um embuste porque é ineficaz em termos preventivos e promete resultados mágicos, como o fim da insegurança, o fim do medo, o fim da delinquência, ou seja, uma absoluta ilusão, utilizando discursos justiceiros sedutores, com base na crença de que o efeito dissuasório da pena e da condenação funciona. E é um embuste perigoso, não só ao criar entre a população elevadas expectativas que são muitas vezes defraudadas, como por resultar num sistema penal caótico, discriminatório e anti-garantista.

O populismo penal do Chega

Em Portugal este populismo penal é assumido como bandeira pela extrema-direita corporizada no Chega e berrado diariamente pelo seu chefe, André Ventura, que criticou essa estratégia penalista na sua tese académica para agora a defender em toda a linha, de acordo com o guião da extrema-direita internacional. O programa eleitoral do Chega na área da justiça para as legislativas de 2022 era quase exclusivamente um elenco de medidas típicas do populismo punitivista, afirmando como princípio condutor a reforma do sistema de justiça “pela conjugação entre o princípio do poder dissuasor das leis, traduzido no agravamento de penas, e o princípio da simplificação e desburocratização das leis e da sua aplicação”, ou concretizando que “promoverá o aumento da moldura penal máxima, designadamente a prisão perpétua para crimes violentos, homicídios, terrorismo e crime organizado, corrupção”, e que aplicará “a prisão preventiva a suspeitos de crimes de colarinho branco e criminalidade económico-financeira organizada”.

A proposta apresentada no parlamento, depois de ter visto recusada a prisão perpétua, por grotesca inconstitucionalidade, e de aumento das penas de prisão para crimes de homicídio “de especial censurabilidade ou perversidade”, traduzida em aumentar os atuais 12 a 25 anos para uns colossais 25 a 65 anos, sendo portanto um disfarce da prisão perpétua, é bem representativa do agravamento da moldura penal típico do argumento dos populistas, segundo os quais penas mais longas e punições mais severas são condição para dissuadir o crime. No entanto, a investigação tem demonstrado que esta abordagem não é eficaz na redução das taxas de criminalidade e que a partir de um determinado limiar a ameaça de punição não constitui fator dissuasor eficaz do comportamento criminoso, pois para o potencial criminoso tanto faz ser preso por 25 ou por 65 anos, será sempre uma vida desperdiçada. Muitos dos países que implementaram leis mais severas não registaram uma diminuição correspondente da criminalidade, como é o caso dos EUA, com uma das leis penais mais severas e uma das taxas de encarceramento mais elevadas do mundo e que mesmo assim não registou uma redução significativa das taxas de criminalidade em resultado dessas políticas.

Outra proposta apresentada pelo Chega, típica do populismo penal, é a da castração química como pena acessória para crimes de abusos sexuais infligidos a menores de 14 anos. Embora esta proposta possa ser apelativa para os que se preocupam com a segurança das crianças, ela não só não constituiu uma solução eficaz para o problema do abuso sexual, dado a investigação ter demonstrado que a castração química não é eficaz na redução das taxas de reincidência, como sobretudo é um castigo físico que é rejeitado por violar direitos protegidos pela lei internacional e pela Constituição portuguesa.

O populismo penal também se traduz em leis desnecessárias, mas apresentadas para ganhar alguma vantagem eleitoral, satisfazendo grupos socioprofissionais que se acredita serem eleitorados potenciais ou simplesmente para criar uma lei de caráter simbólico, que não tem qualquer eficácia ou que nada acrescenta à legislação já existente. É o caso da proposta do Chega de “criminalização do incitamento ao ódio contra os membros dos órgãos de polícia criminal e órgãos judiciais”, acrescentando-o ao artigo 240 do código penal, que trata de crimes “contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica”. Como se vê, a proposta é absolutamente absurda, querendo equivaler o exercício da profissão de polícia a aspetos fundamentais e imutáveis da identidade das vítimas. Para além disto, a proposta é desnecessária visto que este tipo de crime é já considerado pelo código penal em diversos artigos, comprovando que o seu objetivo é ser uma lei-panfleto, que não pretende resolver um problema real ou uma lacuna legislativa.

Finalmente, encontramos também uma série de propostas de legislação punitiva que derivam mais de uma perceção e exploração de medos sociais – por exemplo, a proposta de “fundamentação acrescida nos pedidos de asilo” -, ou da exploração de ressentimentos sociais ou até de simples aproveitamento de uma conjuntura propícia – por exemplo, a proposta de internamento compulsivo de pessoas suspeitas de estarem contaminadas “por qualquer tipo de vírus infetocontagioso”. Estas propostas são bem o sintoma do comportamento demagógico e oportunista de quem as efetua, não procurando combater as causas da criminalidade ou a resolução de problemas reais.

Trapaça

É também importante notar que as propostas de Chega são muitas vezes um mero oportunismo e trapaça discursiva de quem sabe que nunca serão concretizadas. Veja-se o apoio de André Ventura à castração química como castigo para os abusos sexuais de menores: durante meses a fio era rara a semana em que não se referia à questão ou em que não era mencionado nos media por essa característica tornada emblema da sua atitude implacável perante os abusadores; a partir do momento em que se revelaram os inúmeros casos de abuso sexual de menores por parte de padres católicos e o encobrimento por parte da Igreja Católica, Ventura não mais se referiu à castração dos responsáveis. O seu discurso punitivista descobriu repentinamente outros temas muito mais relevantes. De facto, a sua proposta de castração dos abusadores tinha menos a ver com a prevenção de abusos sexuais e muito mais com a construção de uma imagem para si próprio.

Em suma, o populismo punitivista do Chega é uma farsa. E tem tudo de negativo e de perigoso. Traduz-se em medidas desgarradas, que respondem ao problema do dia ou à polémica do momento, mas que não se preocupam com contradições ou equilíbrio na arquitetura penal. Todo ele constitui uma afirmação política instrumentalizando a justiça, assente em estados de alma e perceções genéricas e não comprovadas sobre a dimensão dos fenómenos – corrupção, abusos sexuais, agressões às autoridades – em Portugal. E constitui uma intrujice, um discurso trapaceiro que anuncia a resolução de toda a criminalidade e o combate ao “sistema” e aos “poderosos”, escondendo que só esse mesmo “sistema” e esses mesmos “poderosos” permitem que o seu partido exista, financiando o seu discurso populista.

Na realidade, para combater a criminalidade é preciso um esforço consistente para a prevenir, abordando os fatores sociais e económicos subjacentes, investindo em políticas de pleno emprego e de resposta sociais, investindo no aumento do acesso a cuidados de saúde mental e ao tratamento de dependências, e investindo em programas de educação e de formação. Ou seja, investindo na reforma do sistema de justiça penal de modo a centrar-se na reabilitação e em formas de punição que sejam alinhadas com essa visão estratégica.