A batalha legal travada por Gaëtan Schmitt para ser declarado de “sexo neutro” e a importante circulação do documentário Ni fille ni garçon, que segue a trajetória, entre outros, do ativista Vincent Guillot, trouxeram ao debate público em França as exigências dos movimentos intersexuais. Se os anos 60 foram a época de surgimento dos movimentos feminista e homossexual, poderíamos dizer que o novo milénio se caracteriza pela crescente visibilidade das lutas trans e intersexuais. Abre-se assim a possibilidade de configurar uma segunda revolução sexual transfeminista, não estruturada em forma de política de identidade, mas sim construída através de alianças de múltiplas minorias políticas face à norma.
A nossa história da sexualidade é tão surpreendente como um relato de ficção científica. Depois da Segunda Guerra Mundial, a medicina ocidental, dotada de novas tecnologias que permitiam aceder a diferenças do ser vivo que até então não eram visíveis (diferenças morfológicas, hormonais ou cromossómicas), confronta-se com uma realidade incómoda: existem, desde o nascimento, corpos que não podem ser caracterizados simplesmente como femininos ou masculinos: pénis pequenos, testículos não formados, ausência de útero, variações cromossómicas que excedem XX/XY… Bebés que põem em causa a lógica do binarismo. Dá-se então aquilo a que, na terminologia de Thomas Khun, poderíamos chamar uma crise do paradigma epistemológico da diferença sexual. Teria sido possível modificar o quadro cognitivo da atribuição sexual, abrir a categoria do humano a qualquer forma de existência genital. Porém, o que aconteceu foi exatamente o contrário. O corpo genitalmente diferente foi declarado “monstruoso”, “inviável”, “deficiente” e sujeito a uma série de operações cirúrgicas e hormonais destinadas a reproduzir a morfologia genital masculina ou feminina dominante.
Os macabros protagonistas desta história (John Money, John Hampton e Andrea Prader) não são nem físicos nucleares nem militares. São pediatras. A partir dos anos 50, a “escala de Prader” (um método visual para medir o que denominam a “virilização anormal dos órgãos genitais” dos bebés, estudando a longitude e a forma dos órgãos) e o “protocolo Money” (que estabelece os passos a seguir para reconduzir o corpo de um bebé intersexo para um dos polos do binário, masculino ou feminino) passaram a ser generalizados. A mutilação genital dos bebés considerados intersexuais torna-se então uma rotina hospitalar. Se diversas convicções religiosas praticam rituais de marcação e mutilação genital (clitoridectomia, circuncisão, etc.) que o Ocidente dito civilizado declara como bárbaros, esse mesmo discurso racional aceita como necessária a prática de violentos rituais científicos de mutilação genital. A ficção científica gore porn dos anos 50 é hoje a nossa arqueologia anatómica comum.
A diferença genital masculino-feminino é, na realidade, uma estética arbitrária e historicamente sobrevalorizada (um conjunto de formas julgadas de acordo com uma escala de valores), segundo a qual os seres humanos têm apenas duas possibilidades: pénis penetrante, vagina penetrada. Somos vítimas de um kitsch porno-científico: a estandardização da forma do corpo humano de acordo com critérios de estética genital heterocentrada. Fora desta estética binária, qualquer corpo se considera patológico e, portanto, é submetido a um processo de normalização terapêutica.
O sistema binário sexo/género é para o corpo humano o que o mapa é para o território: um quadro político que define órgãos, funções e usos. Um quadro cognitivo que estabelece as fronteiras que separam o normal do patológico. Da mesma forma que os países africanos foram inventados pelos acordos coloniais feitos pelos impérios do século XIX, a forma e a função dos nossos chamados órgãos sexuais foram o resultado dos acordos feitos pela comunidade científica norte-americana do período da Guerra Fria e das suas tentativas para manter os privilégios do patriarcado e a organização social da reprodução heterossexual.
O movimento intersexual contemporâneo denuncia a forma como Prader confunde, por exemplo, as formas genitais pouco habituais (realmente, “pouco habituais”? Um bebé em cada 2000 nascidos, segundo Prader, um em cada 1000 ou até em cada 800 segundo estudos mais recentes) com formas patológicas, forçando um processo de normalização cirúrgica ou hormonal que viola o direito de um corpo à sua integridade morfológica. A mutilação genital deve ser considerada um crime, independentemente de ser levada a cabo sob a legitimação de um discurso religioso ou científico. Um corpo com macroclítoris e com útero tem direito a ser reconhecido como um corpo humano viável, sem necessidade de ser reconduzido de forma violenta à estética genital binária. Um corpo sem pénis e com um orifício não penetrável pode ter existência genital e sexual fora da imposição forçada da heterossexualidade normativa. Outras estéticas genitais são possíveis e merecem ser politicamente viáveis. Algumas pessoas trans escolhem intencionalmente uma estética intersexual (homem sem pénis, mulher com pénis, etc.) como forma preferencial de redesenhar o corpo.
É o regime binário de sexo-género que deve ser modificado, não os corpos chamados intersexuais. O preço da vossa normalidade sexual é o nosso “intersexualicídio”. A única cura de que precisamos é a de uma mudança de paradigma. No entanto, como a história nos ensinou, dado que o paradigma da diferença sexual e de género é a garantia da manutenção de um conjunto de privilégios patriarcais e heterossexuais, essa mudança não será possível sem uma revolução política.
O transfeminismo poderá definir-se como aquele movimento revolucionário, ainda que pacífico, que, procedente da aliança das lutas históricas antipatriarcais do feminismo e das lutas recentes pela desmedicalização e despatologização dos movimentos trans, intersexual e da deficiência (handiqueer), entende a abolição do sistema binário sexo-género, e das suas inscrições institucionais e administrativas (desde a atribuição do sexo in utero ou no momento do nascimento) como condição de possibilidade de uma transformação política profunda, que conduza ao reconhecimento da irredutível multiplicidade dos seres vivos e do respeito pela sua integridade física.
[Publicado originalmente no Jornal Libération e recolhido no livro Um apartamento em Urano (Bazarov, 2020)]