O que é uma comunidade?

A pergunta que leu como título deste texto é aquela que lança este dossiê. Compreender o que é uma comunidade, qual é o seu potencial político, e quais as suas dimensões é uma necessidade fundamental. Não só porque as comunidades são o habitat natural de qualquer militante de base, mas também porque elas já demonstraram vezes sem conta o seu potencial transformador enquanto sujeito político.

Ainda mais, vivemos nos últimos cinquenta anos uma transformação radical dos laços sociais, despoletada pelo neoliberalismo e acompanhada pelo desenvolvimento tecnológico e pela globalização. Essa transformação é marcada sobretudo pela erosão dos laços sociais, e portanto, pelo enfraquecimento das comunidades, a destruição de comunidades e a criação de outras novas. As comunidades digitais, cujos formatos estão perpetuamente em alteração, marcam cada vez mais o passo da disputa política. As comunidades de bairro, por outro lado, vão sendo desmanteladas e desintegradas, fruto da gentrificação nas metrópoles urbanas, mas também nas cidades mais pequenas. Mas também nessas situações são forjadas comunidades de luta. No Talude ou no Segundo Torrão, no Bairro da Jamaica, nos trabalhos de plataforma, entre as amas, em reação à violência homofóbica, transfóbica e racista surgem comunidades que se plantam firmemente como árvores, criam raízes e potenciam a luta social.

O que é então uma comunidade? Uma espécie de rede interpessoal comum, que forma laços afetivos e de amizade. Mas as comunidades têm uma peculiaridade. Ao falar sobre a comunidade que é a ‘nação’, o antropólogo Benedict Anderson, define-a como “imaginada”. É uma definição que pode ser reutilizada. Uma comunidade só existe se for imaginada pelos seus membros enquanto tal. Qualquer pessoa pode, por exemplo, formar laços interpessoais e até afetivos com outras pessoas no seu local de trabalho, sem nunca pensar nessas pessoas como a sua comunidade. Ou seja, a comunidade só existe porque lhe está subjacente um sentimento de pertença.

Por isso mesmo, a ideia de comunidade é acompanhada de fronteiras. E essas fronteiras estão muitas vezes na base da discriminação. Isto porque esse sentimento de pertença cria uma dinâmica de exclusão, uma dicotomia entre nós/eles, que muitas vezes está na base do ódio (“nós, os portugueses” contra “eles, os imigrantes”, por exemplo). Essa dinâmica não é má a priori, ela pode ser invertida até (“nós, os trabalhadores” contra “eles, os exploradores”), ou usada para celebrar a diversidade. Mas é bom que a sua existência seja lembrada, porque é um traços que define uma comunidade.

O pensamento político sobre as comunidades, nestes moldes e com este contexto, levam-nos a duas conclusões claras e um desafio enorme. A primeira conclusão é a de que os novos tipos de comunidades que surgem, digitais ou físicas, têm sido fundamentais para o crescimento da extrema-direita e surgem em reação a fenómenos sociais e, sobretudo, culturais. A comunidade ‘incel’ surge da crise da masculinidade. A comunidade nacionalista e racista, que já se sente forte o suficiente para organizar manifestações contra a imigração e o Islão, surge do confronto cultural com a presença de imigrantes no nosso país. Do nosso lado da barricada, a comunidade LGBTQI tem sido aquela que melhor exemplifica o potencial político das comunidades de luta.

A segunda conclusão é a de que o trabalho político das comunidades que queremos organizar e mobilizar não se pode cerrar em si próprio. Isto é, não queremos comunidades apenas de resistência. Porque o sentimento de pertença e as dinâmicas da comunidade oferecem uma armadilha: a de que a comunidade por si só é uma coisa revolucionária. Não é, e não o devemos assumir como sendo. Só serão revolucionárias se conseguirem mudar o mundo que as rodeia. Em contestação da lógica autonomista, devemos construir e procurar mobilizar comunidades prontas para o combate político transformador.

O desafio é de toda a esquerda, e não é nenhuma surpresa nem novidade. Até o Papa Francisco o relembra em Fratelli Tutti: precisamos de reconstruir a solidariedade, a compaixão, a amizade, contra a atomização do neoliberalismo, que se aproveita da anomia social para lançar trincheiras da classe trabalhadora umas contra as outras.

Por isso também, a nossa direção política tem de ir no sentido de criar comunidade, e não de alienar. A nossa resposta deve ser a inclusão e não a exclusão e o ressentimento. Para isso, é importante que nos lembremos da dinâmica de exclusão inerente às comunidades. Queremos refugiar-nos em certas comunidades, e excluímos quem não compreende. Mas deveríamos excluir apenas quem compreende, e mesmo assim se opõe por princípio, por suposta superioridade moral e por ódio.