O que resta de político no “teatro político”

Conferência realizada em dezembro de 2019 no ciclo de conversas “Teatro e política” que aconteceu no Mira Fórum (Porto). O ciclo fez parte das atividades em torno da exposição “Rutura em cena” que teve como base o trabalho de investigação de Mário Moutinho sobre o teatro semiprofissional do Porto. Tradução e adaptação de Rafaella Uhiara e Paulo Bio Toledo (em confronto com a tradução simultânea realizada pelo cineasta francês radicado em Portugal, Saguenail. Posteriormente, o texto foi revisto e ampliado pelo autor).

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A história dominante diz-nos que, durante o século XX, as grandes invenções no campo da arte se deveram ao chamado “teatro de arte”, que o teatro político foi sempre um teatro mal-acabado, rudimentar, sem forma – ou cujas formas seriam frustrantes. No entanto, quando olho para este teatro – mesmo sem levar em conta as inúmeras experiências anónimas que não deixaram rasto – não posso deixar de notar a contribuição para a “arte do teatro” de grandes nomes como Erwin Piscator, Bertolt Brecht, Meyerhold. Foram grandes inventores da arte, e foram-no por razões políticas. Piscator, para dar apenas um exemplo, no seu espetáculo Trotz alledem colocou no palco o cinema e enormes telas de projeção. Fez isso por razões militantes. No palco ele mostrava os membros do parlamento alemão, quando votaram as dotações de guerra em 1914 e, simultaneamente, projetava no ecrã a grande consequência desses votos: a carnificina da Primeira Guerra Mundial. Piscator tentava inventar uma forma de o teatro se mover mais rápido do que a história e do que o esquecimento que ela produz. Junta as causas às consequências, para além do tempo. Em suma, foi para resolver um problema político que ele trouxe o cinema para o palco. 

A mesma coisa acontece em França nos anos 60 e 70. O teatro militante que estudei (assim como todo o teatro militante, de modo geral) teve de se fazer perguntas do tipo: como representar o povo, a massa, o ato, sobre o palco? Como é que se representa o pensamento, a abstração, o “sistema”? Por exemplo, se alguém simplesmente representar um homem que mata a namorada no palco, a atuação pode ser lida como faits divers. Entretanto, em França, a cada dois dias, uma mulher é assassinada por seu parceiro. Este não é um caso isolado, há um sistema por trás dele e ele tem um nome: patriarcado. Como podemos inventar uma representação que nos permita identificar esse sistema, para torná-lo visível? Como contar uma história que não é feita apenas por grandes homens, grandes mulheres? De que tipo de emoções precisamos, que novas histórias, etc.?

A política impõe questões sobre o palco, faz repensar os seus sinais, os seus códigos de jogo e representação, a encenação, a divisão social do trabalho, o processo de criação. Ela faz perguntas e exige respostas. As respostas nem sempre são novas, ou inéditas, mas não são menos importantes do que aquelas do chamado “teatro de arte” e também não são menos úteis a um pensamento sobre a arte teatral. As questões colocadas durante aquela década vermelha e negra, como as tensões entre o modelo vanguardista e a preocupação de ser popular, têm potencial de serem novamente abordadas. Creio que são questões, apesar de vindas de um outro momento, que ainda são uma fonte de inspiração para o nosso presente. Embora inspiração não signifique repetição. Essa história teve lugar em França até 1977-78. Uma das suas últimas grandes datas é um importante festival intitulado “O pequeno parafuso no grande mecanismo da revolução”. O título retoma uma fórmula de Lenin sobre a arte: sem o pequeno parafuso, não há um grande mecanismo, mas é apenas um pequeno parafuso. Devemos permanecer humildes e, ao mesmo tempo, saber apreciar a importância da atividade teatral. Essa história termina no final dos anos 1970 e, com exceção de alguns textos, será apagada da memória e dos livros de história. Os poucos textos dramáticos que restam daquele tempo não se podem livrar de uma contradição, bem expressa pela formulação do dramaturgo Dario Fo: um teatro feito para queimar (um teatro da bruciare). Trata-se de um teatro de urgência.

Nos anos 80, o teatro político vai atravessar um período complicado devido, sobretudo, ao desaparecimento do ativismo político. A chegada dos socialistas ao poder, que muito rapidamente se aliaram incondicionalmente à lei do mercado, foi acompanhada por toda uma série de capitulações (nem todas com o mesmo significado), revisionismo e fadiga. Estes são os “anos de inverno” (années d’hiver), dirá Guattari (1985), anos termidorianos. Tudo isso nos obriga a refletir sobre a ligação que se estabelece entre o movimento social e o teatro político, a questão das conjunturas. Jean Jaurès defendeu que o teatro não pode estar muito à frente do povo. Eu não sei. Penso que esta ligação é complexa, que não é sistemática ou direta. Se a arte não depende totalmente da luta de classes, é óbvio que existe uma ligação. Um movimento social forte, vivo e criativo não produz necessariamente teatro, mas o teatro político é impulsionado por lutas, pela sua vivacidade, pelas formas que assumem e pelas suas agendas.

Mas existe uma dialética entre o tempo da história e o das invenções políticas teatrais. É por isso que um importante teatro político renascerá, ecoando as lutas sociais, nos anos 1990, após os terríveis anos 1980. Dito de forma esquemática, os anos 1980 elegem a renúncia. Não havia, ao que parece, alternativa. Era o tempo do cinismo, do escárnio da vitória do liberalismo e do mercado. Os artistas deveriam se envergonhar por terem desejado mudar a história e por terem se preocupado com algo mais do que a sua arte. O resultado desta ofensiva foi uma mudança substancial no repertório daqueles anos, na própria conceção da arte, agora alimentada pela ideologia (promovida e vendida pelo sistema) do grande artista, o gênio possuído pela inspiração, a quem as musas sussurram no ouvido. Era uma questão de desdemocratizar a experiência da arte – e por democracia entendemos aqui um processo radical, guiado pela incondicionalidade da igualdade. A tensão do artista apanhado entre o povo e o príncipe foi desfeita em benefício apenas do poder. Se, durante os anos 1970, os artistas profissionais ou semiprofissionais tentaram construir uma relação de confronto com o mundo político, uma relação de forças, nos anos 1980 foram as relações de cumplicidade e de cortesia que prevaleceram. Os anos 1990 assistiram ao surgimento de novas frentes de batalha. O movimento antiglobalização foi muito forte – embora não reste muito dele. As lutas sociais derrotaram temporariamente a ofensiva liberal – mas, atualmente, ela já foi retomada e se mantém vitoriosa. Dizia-se: “Outro mundo é possível”, porém, como percebeu o filósofo e ativista Daniel Bensaïd, não se dizia qual, nem se dizia como. Naqueles anos foi recriado um “teatro político”, contudo, era, na verdade, um “teatro cidadão” – e a política não pode ser totalmente confundida com a cidadania, pois ela perde, assim, justamente a sua dinâmica conflituosa. Seja como for, o teatro voltou a falar da vida real, do mundo social e se colocou novamente a tarefa de perceber a realidade. Apesar disso, era um teatro que já não parecia querer contribuir para a sua transformação. Outro aspeto do “teatro político” emergiu daí: irônico, pós-moderno e em busca da desconstrução de toda a verdade. Autoproclamou-se crítico. Imaginou-se subversivo. No entanto, era frequentemente uma caricatura inofensiva, arrogante e oca do capitalismo, um capitalismo que o fascinava a ponto de emular as suas formas, os seus reflexos. E desconstruir não é destruir. 

A barbárie neoliberal da atualidade, o ciclo de nossas lutas derrotadas, exige outras formas e pensamentos para o teatro. O neoliberalismo muda nossas sensibilidades, nossas subjetividades, ao mesmo tempo em que destrói o planeta e a solidariedade. Isto deve intervir na conceção das obras. As formas de subversão não são eternas; o que era transgressor em um momento é incorporado pelo capital; o que era radical às vezes acaba sendo neutralizado.

Muitas vezes, a preguiça, o sectarismo, a fadiga fazem-nos replicar, sem críticas, o que existiu. Devemos examinar nosso patrimônio, adaptá-lo e reinventá-lo tendo em vista as formas parcialmente novas de dominação, exploração e opressão. Foi por isso que tomei a liberdade de escrever Contre le théâtre politique (Contra o teatro político).

É preciso assinalar que o neoliberalismo organiza o desaparecimento desta atividade específica da humanidade que é a arte. Deve ser dito e repetido: as elites são incultas. Eu recuso o fetichismo da arte, ela não protege da ignorância, mas as elites políticas e financeiras atualmente ostentam com orgulho sua estupidez cultural. Para o neoliberalismo, os artistas, para além de alguns grandes nomes que gostam de ter à sua mesa, são apenas um luxo inútil.

O neoliberalismo só compreende a importância se puder medir e quantificar. Para estes neoliberais, o teatro deve ser útil, deve ser útil para alguma coisa. Ele não poderia ajudar a pacificar as situações sociais? Ou enaltecer os méritos da República Francesa? O teatro deve ser político no sentido defendido por este Estado, como um mecanismo “pacificador”? É claro, portanto, que é contra esse “teatro político” que estou a falar. Política neste contexto significa “útil para o Estado”.

Os artistas de hoje, antes de poderem criar, devem realizar oficinas com crianças, doentes, prisioneiros. Penso que isso é muito bom, desde que seja realmente uma escolha e que o façam como artistas, não como um substituto dos educadores ou das profissões que fazem trabalho social e são sistematicamente suprimidas e descartadas pelo poder. Em paralelo, os artistas são chamados a fazer trabalhos para os quais não têm formação e para os quais não são nada competentes.

Ao mesmo tempo, por sua vez, os artistas começaram a internalizar esta exigência, a querer provar que são úteis, a dar garantias. A realidade invadiu a cena teatral, como se isso fosse suficiente, como se um tema político produzisse automaticamente teatro político. O teatro decidiu documentar, alertar, sinalizar, explicar. Mas a política não é sociologia, não se dá pelo puro estabelecimento dos fatos. E a emancipação olha com desconfiança para aqueles que querem ocupar a posição do emancipador. O que desaparece, nesse processo, é a própria questão da arte. Não da arte pela arte, mas da arte como arte. E se muitas vezes a política foi um desafio à arte, aqui ela torna-se o seu extintor. Esta política é prejudicial à arte, mas é também prejudicial à própria política, porque oferece uma conceção da política que não é perturbada nem perturbadora, sem confrontação ou delimitação clara. O que me interessa, em meus estudos, é seguir as transformações da palavra política, os significados que assume, os usos que lhe damos. Política às vezes aparece como um espantalho, outras como um engodo qualquer; a palavra pode ser o sinal de uma exigência ou somente um rótulo confortável; uma passagem obrigatória ou uma referência descartável. 

O filósofo francês Jacques Rancière diz que “política” é uma palavra de desentendimento. Ele quer dizer que não há uma definição inequívoca da palavra “política”. Na mesa de negociação de uma fábrica que está a despedir trabalhadores, os acionistas e os trabalhadores não terão a mesma definição de política. Nenhum deles está necessariamente certo. A política está presa neste emaranhado de interesses, nestas relações de poder na história. Definir o que significa “política” já é uma escolha política. Assim, a ideia não é criar e defender uma categoria chamada “teatro político” como algo eterno, rígido, firme em seus próprios contornos, mas sim aproveitar a plasticidade da palavra “político” e colocar o teatro político no centro de um conjunto de conflitos, contradições e decisões. Concluo: “contra o teatro político” não significa que o teatro deve renunciar à política, mas que deve fazer da política um termo “embaraçoso”, algo que não é evidente e que deve ser constantemente redefinido e considerado em suas circunstâncias particulares. 

“Teatro político” tornou-se um velho casal… Nem o teatro nem a política perguntam o que o outro está fazendo lá, nem o que poderiam fazer juntos… O mundo mudou. O adversário é formidável. A arte que se opõe a ele também deve ser formidável, não deve se contentar em continuar, repetir ou seguir seu caminho sem tensões, contradições ou preocupações. Surge então a questão: o que o teatro pode fazer com a política? Ou melhor, o que o teatro pode fazer por si só? Quais são os golpes que só esta arte pode e sabe como dar, e que são diferentes do que nossos folhetos e jornais, nossas manifestações e organizações já fazem? Somente se tentarmos responder a estas perguntas é que poderemos colocar a questão da arte e perceber sua incomparável contribuição para um “movimento real que suprime a ordem existente”