Nos cinquenta anos do 25 de Abril, a tendência para produzir um catálogo prescritivo e celebratório do que foi o repertório artístico da revolução é natural, mas esse catálogo está bem estabelecido, é organicamente partilhado entre as diferentes subjetividades de Abril e pouco lhe teria a acrescentar. Mais relevante será, talvez, procurar entender como é que esse repertório se afirma naquele momento histórico e como é que ele nos chega ao presente.
Do ponto de vista das artes performativas, a ideia de repertório remete para um conjunto estável de textos (de textos dramatúrgicos, musicais a notações coreográficas) que um artista ou grupo artístico terá preparado para colocar em cena a qualquer momento. Subentende uma relação temporal entre ensaio e evento em forma de promessa (Basualdo, 2016). A noção de partitura, partindo da musicologia e depois cooptada pelas artes visuais no séc. XX, subentende por seu lado uma promessa de reinterpretação partindo de um conjunto de informação estável. Se a performance art complexifica estas noções, o que importa reter para a leitura deste texto é a sua abertura para a dramaturgia social (Cvejić/Vujanović, 2015, 2022) e o conjunto de gestos performativos que afirmam uma ordem social ou permitem uma ruptura. Repertório, na perspectiva deste texto, deve por isso mais às suas vidas após a criação, aos usos que culturalmente lhes demos, do que às obras em si, porque é impossível falar do repertório de Abril desligado das memórias sociais que produzimos, reproduzimos e apagamos através dele.
O repertório artístico de Abril ocupa um espaço tão presente quanto difuso na cultura portuguesa. O sintoma mais óbvio é a sua função de arquivo da mobilização política. Após 1974, será tão difícil encontrar um protesto ou manifestação com mobilização popular que não recorra a uma canção de Abril quanto identificar uma mobilização política que, desde então, tenha produzido um repertório próprio equiparável ao corpo cultural que se define através de um antes e um depois do 25 de Abril. As mobilizações do Que se Lixe a Troika (2012/13), por exemplo, levaram milhões de pessoas à rua ao som do que se tornou o hino de 1974, Grândola, vila morena (Zeca Afonso, 1971), bem como de Acordai (um “canto da alma” de temperamento sombrio “usado nos peditórios noturnos pelas almas em processo de purificação no purgatório que necessitem de auxílio para a elevação até ao Céu”, recolhida pelo etnógrafo Fernando Serrano em 1921 e adaptada por Fernando Lopes Graça para a Segunda Cantata de Natal em 1961).
A estética de Abril abre, por isso, uma contradição a dois tempos: cria uma cultura política que tem tanto de utopia quanto retrotopia(Bauman, 2017): algo que habita um passado perdido ou abandonado, mas que não morreu, gerando por isso uma nostalgia por um futuro não existente. Esta tensão exige e produz respostas que tanto se podem manifestar pelo desmembramento estético entre arte e política – por exemplo, seguindo a crítica de Deleuze e Guattari, através da simples reapropriação científico-económica, reduzindo Mondrian a um motivo através do design; transformando Carlos Paredes numa paixão patrimonial da portugalidade – ou pela redução da política à cultura.
A forma como o Maio de 68 francês nos chega é uma boa referência para este problema. Em May ‘68 and Its Afterlives, Kristin Ross (2008) levanta o seguinte paradoxo: como é que o conjunto de mobilizações operárias e agrárias que eclodiram em França nos quinze anos que antecedem 68, mobilizações que sofreram uma repressão profundamente violenta, que se entrelaçaram com a guerra colonial na Argélia e, depois, se vêm a triangular em 1968 num movimento popular que procurou “desafiar o poder do especialista, perturbar o sistema da esfera naturalizada de competência (em particular, a esfera da política especializada)”,[1] como é que essas mobilizações, através de operações de historiografia duvidosa e uma cultura mediática perversa, são transformadas nas décadas seguintes num fenómeno de lifestyle?
Esta reconversão aconteceu, desde logo, através de uma limitação espacial e temporal: limitando Maio de 68 literalmente a Maio de 1968, e reduzindo a expressão geográfica das manifestações exclusivamente a Paris com o resto do país a servir de paisagem. Essa mesma reconversão agiu também sobre a figura social que corporiza 68: o estudante revoltoso que queria uma transformação “benigna” de costumes, acompanhando a modernização de França de um estado burguês para um novo modelo liberal da burguesia financeira.[2]
Num bordão que é depois apropriado também para qualificar o 25 de Abril, “ninguém morreu em 68”. Para Ross, “esta frase repetida até à exaustão” é, na realidade, falsa.[3] A sua repetição será, antes, um sintoma do processo de redução de 68 a um fenómeno cultural que teria permitido a transição entre um regime autoritário e uma democracia liberal.
As subjetividades de Abril, sendo diferentes devido às especificidades históricas da revolução portuguesa, vão percorrer um caminho semelhante. Há, desde logo, uma tentativa da direita política para reconfigurar o período revolucionário num “excesso de abril” (Trindade, 2004) após o qual a história retoma a sua cadência “normal”. O que aliás explica a recente reinvenção institucional da tentativa de golpe contrarrevolucionário a 25 de novembro de 1975 enquanto momento que verdadeiramente instaura a democracia.[4]
Fundamental nesse esforço, acrescento eu, é dissociar a revolução do seu repertório e dos espaços que ele anima e preenche, aos usos que culturalmente lhe demos e memórias sociais que produzimos. Este fenómeno opera a velocidades muito distintas nas diferentes artes performativas. A música de Zeca Afonso, Carlos Paredes, Fausto, Sérgio Godinho e outros adapta-se mais facilmente às indústrias culturais do que outras artes, ocupando assim as subjetividades de Abril no espaço público até hoje, e isso também altera a cultura política da esquerda e as relações políticas deste repertório.
Será por isso necessário relembrar três coisas. Seja na música ou no teatro, o impulso artístico que vai depois dar corpo cultural à revolução começa antes de 1974. Neste grupo de artistas, há uma relação estreita entre “malta do teatro e malta da música” (o caso mais evidente será o de Sérgio Godinho, mas também o de José Mário Branco). Os grupos que se vão criar antes e depois de 1974 não obedecem à dicotomia amador/profissional (a tendência para a profissionalização dos grupos de teatro e o relativo abandono dos grupos de teatro de amadores, ou teatro semiprofissional no termo de Luísa Marinho e Mário Moutinho (2020) é o resultado de políticas públicas específicas que se afirmam nas décadas seguintes).
O espaço entre a liberdade e a igualdade
Depois de 48 anos de ditadura, violência política e social, censura e asfixia económica[5], a palavra Liberdade assumiu imediatamente um lugar universalizante das subjetividades de Abril. É uma figura central no repertório artístico que ocupa as ruas (por exemplo, o musical Liberdade! Liberdade!, com texto de Millôr Fernandes, de 1965, é reapropriado pelo Movimento Democrático dos Artistas Plásticos para criar um mural colectivo, conhecido por Painel do Mercado do Povo, a 10 de junho de 1974). Mas, como reza a canção, liberdade não acontece sem “paz, pão, habitação, saúde, educação” (Sérgio Godinho, 1974). A relação política, programática e performativa entre liberdade e igualdade é estabelecida no repertório de Abril logo em 1974.
A questão que devemos colocar hoje é se essa relação ainda domina a estética de Abril.
Se me parece evidente que as performatividades da revolução – seja em performatividades ritualizadas que vão do desfile anual do 25 de abril ou 1º de Maio às sessões solenes da Assembleia da República, ou em mobilizações que tomam a revolução como referencial, tal como o Que se Lixe a Troika ou, mais recentemente, os manifestos pela dignidade laboral nas artes (2018/21) (Cruz, 2018; Leão, 2020),[6] a greve climática estudantil (2019), a greve feminista (2021), ou manifestações pelo direito à habitação (2023) – mantêm uma relação política e performativa entre liberdade e igualdade, também me parece evidente que o processo de esgotamento capitalista da revolução (seguindo o raciocínio de Enzo Traverso no Congresso Internacional dos 50 anos do 25 de Abril, maio, 2024), abriu o espaço necessário para uma relação proceduralista entre as duas palavras.
Voltando à noção de coreografia social, o século XXI é definido por uma forma específica de coreografia: o proceduralismo. Nas democracias liberais ocidentais, o proceduralismo restringe a democracia a um processo de tomada de decisão cuja legitimidade “depende exclusivamente da imparcialidade [fairness] do processo de decisão, não da qualidade dos resultados que produz”,[7]levando à crítica de Slavoj Zizek ao proceduralismo enquanto “ideologia que impede qualquer revolta contra o capitalismo” (apudCvejić, 2015: 74, tradução minha), acorrentando a consciência política a um conceito vazio de liberdade.
O contraste com as reconfigurações do Maio de 68 são, novamente, um ponto de referência. Para Kristin Ross, se a palavra liberdadese tornou a sinédoque histórica de 68 ao longo das décadas posteriores, a verdadeira aspiração política daquelas mobilizações seria a igualdade.
The political subjectivity that emerged in May was a relational one, built around a polemics of equality […]. The experience of equality, as it was lived by many in the course of the movement – neither as a goal nor a future agenda but as something occurring in the present and verified as such – constitutes an enormous challenge for subsequent representation. (Ross, 2008: 13)
E acrescenta ainda:
When the union of intellectual contestation with workers struggle, when that idea slips away or is forgotten, what remains of ‘68 cannot be much more than the prefiguration of an “emancipatory” counterculture, a metaphysics of desire and liberation, the rehearsal for a world made up of “desiring machines” and “autonomous individuals” rooted to the irreducible ground of personal experience. (Ross, 2008: 14)
Uma breve consulta às actividades ou programas financiados pela Comissão Comemorativa dos 50 anos do 25 de Abril confirma a utilização abundante de liberdade enquanto sinédoque da revolução. A título de exemplo, o Museu Nacional do Teatro e da Dança organizou uma exposição com o título “Liberdade! Liberdade! A Revolução no Teatro”, inaugurada no Festival de Almada a 4 de julho de 2024 (curadoria de Nuno Costa Moura). Por outro lado, no trabalho de investigação desenvolvido pelo projeto ARTHE – Arquivar o Teatro, nomeadamente nas entrevistas realizadas em método de história oral (organizadas pelas orientadoras do projeto Maria João Brilhante e Ana Bigotte Vieira) a diferentes personalidades das companhias de teatro independente, torna-se evidente que o referencial de libertação contra a censura é dominante na vida de quem fazia teatro e na memória que guardam das conquistas de Abril. Nada garante, no entanto, que a afirmação comemorativa[8] de liberdade mantenha o laço com igualdade.
Seguindo esta crítica, julgo que a separação entre liberdade e igualdade – cuja união define os dois momentos históricos que aqui abordei – obedece a uma lógica de esgotamento proceduralista da política, e que, nas artes performativas e sobretudo nas instituições culturais, isso passa hoje por uma performatividade da ética política sem nenhum efeito político no combate que pretendem afirmar. O repertório de Abril assumiu, por isso, uma função paradoxal: persistindo enquanto mecanismo performativo que mantém liberdadeunida à igualdade, libertou as artes performativas da sua dimensão política.
Bibliografia:
Afonso, José (1971). Grândola, Vila Morena [LP] (Lisboa, Orfeu)
Bauman, Zygmunt (2017). Retrotopia (Cambridge, Polity Press)
Balme, Christopher (2014). The Theatrical Public Sphere (Cambridge: Cambridge University Press)
Basualdo, Carlos (2016). Score. In Terms of performance. Consultado a 11/10/2024. Disponível em: http://intermsofperformance.site/keywords/score/carlos-basualdo
Cruz, Tiago Ivo (2018). Apoios às artes – Radiografia de uma contestação. Esquerda.net. Disponível em:https://www.esquerda.net/dossier/radiografia-de-uma-contestacao/54517
Cvejić, Bojana e Vujanović, Ana (2015). Public Sphere by Performance (Berlin: b_books)
Cvejić, Bojana e Vujanović, Ana (2022). Toward a Transindividual Self: A Study in Social Dramaturgy (Berlin: Archive Books)
Godinho, Sérgio (1974). À queima roupa [LP] (Lisboa, Universal Music Portugal)
Graça, Fernando Lopes (1961). Segunda Cantata do Natal. Consultado em 4/10/2024. Disponível em: http://www.mic.pt/dispatcher?where=2&what=2&show=1&obra_id=4959&lang=PT
Leão, Tânia. (Org.). (2020). Em Suspenso. Reflexões Sobre o Trabalho Artístico, Cultural e Criativo na Era Covid-19 (1ª ed.). Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.
Ross, K. (2002). May ’68 and its afterlives (The University of Chicago Press)
Marinho, Luísa e Moutinho, Mário (2019). O Teatro Semiprofissional no Porto | Artes, activismo e experimentalismo nos anos 70 e 80 (Santa Maria da Feira, Edições Afrontamento)
Trindade, Luís (2004). “Os excessos de Abril” in História 65:20-31
[1] No original: “mass movement that sought, above all, in my view, to contest the domain of the expert, to disrupt the system of naturalized sphere of competence (especially the sphere of specialized politics)” (Ross, 2008: 14).
[2] No original: “benign transformation of customs and lifestyles that necessarily accompanied France’s modernization from an authoritarian bourgeois state to a new, liberal, modern financier bourgeoisie” (Ross, 2008: 14).
[3] No original: “this much-repeated phrase is, in fact, false” (2008: 23).
[4] Os partidos CHEGA e CDS apresentaram, em junho de 2024, uma proposta para que, à semelhança das comemorações anuais do 25 de Abril, a Assembleia da República passe igualmente a comemorar o 25 de Novembro. A proposta do CDS foi aprovada com os votos favoráveis do CHEGA, IL, CDS, PSD, e abstenção do PAN.
[5] Até 1974, a política de apoios às artes organizada através do Fundo de Teatro (1950-1986), é orientada quase exclusivamente para a estabilidade das empresas teatrais, adoptando uma lógica de serviço público e apoio aos novos grupos independentes de teatro após 1974.
[6] Para mais informação, consultar o Apoios às artes – Radiografia de uma contestação (Cruz, 2018) (disponível em: https://www.esquerda.net/dossier/radiografia-de-uma-contestacao/54517), e Em Suspenso. Reflexões Sobre o Trabalho Artístico, Cultural e Criativo na Era Covid-19 (Leão et al, 2020) (disponível em: https://isociologia.up.pt/vol-5).
[7] No original:”depends only on the fairness of the decision-making process, not on the quality of the outcomes it produces” (Cvejić, 2015: 73).
[8] Uma atitude que Eduarda Dionísio rejeitaria visceralmente tendo como referência precisamente o Maio de 68. Intervenção de Eduarda Dionísio, em 2008, numa iniciativa organizada pelo Centro Nacional de Cultura por ocasião dos quarenta anos do Maio de 68, está disponível aqui: https://m.soundcloud.com/cnc_75anos_2020/eduarda-dionisio-maio-de-68-marcas-e-horizontes-do-fim-dos-anos-60-2008