O sistema “patriarcal-capitalista”: duas faces da mesma moeda?

Durante uma incursão recente pelas teóricas do Ecofeminismo, deparei-me com o trabalho da socióloga alemã Maria Mies. No seu livro, Patriarchy and Accumulation on a World Scale (em tradução livre, Patriarcado e Acumulação à Escala Global), Mies argumenta que o capitalismo não pode funcionar sem o patriarcado, que o processo de acumulação de capital não poderá ser sustentado, a não ser que a relação patriarcal entre homens e mulheres seja mantida. Para o justificar, inicialmente pega no argumento de Rosa Luxemburgo de que o modo de produção capitalista não é equivalente à formulação “capital-salário-trabalho”, mas que este necessita de categorias de “colónias”, particularmente mulheres, outros povos e da natureza, para que o modelo de crescimento implacável possa ser continuado. 

Mies considera que a superexploração do trabalho não remunerado é uma pré-condição necessária sob a qual a exploração do trabalho assalariado é tornado possível. Ela define essa exploração como “superexploração” pois esta não é baseada na apropriação do excedente do tempo de trabalho socialmente necessário, mas sim da apropriação do tempo de trabalho necessário à subsistência dos trabalhadores. Mies argumenta que a “produção” e a “reprodução” deveriam ser tratados como aspectos de um sistema intrinsecamente interconectado, de que apelida de “sistema patriarcal-capitalista”, invés de serem entendidos dentro de uma teoria de “dois sistemas”. Para ela, sem o trabalho não pago da produção de subsistência, o trabalho assalariado não poderia ser “produtivo”. 

Ao defender que a divisão hierárquica do trabalho entre mulheres e homens forma uma parte integral das dinâmicas de produção à escala global, Mies advoga que estas não devem ser tidas como uma questão referente à família, mas sim como um problema estrutural de toda a sociedade. À partida, a alegação é clara: as assimetrias na divisão sexual do trabalho devem-se à apropriação pelos homens dos frutos do trabalho das mulheres, e que tal apropriação só é possível através da manutenção da relação de exploração e dominação entre os sexos (pela violência e coerção). A meu ver, as contradições surgem no modelo que Mies cria para justificar esta relação de dominação originária. A dicotomia que monta entre mulher produtora de vida (“Mulher-Produtora”) e homem expropriador  (“Homem-Guerreiro”) é centrada no acto da reprodução, a produção de novos seres humanos. A implicação que faz é que a “produção feminina”, ou seja, a capacidade das mulheres de criarem novos trabalhadores, tem que ser assegurada pelos homens com recurso à violência e à dominação.  

Tanto quanto consigo perceber, esta ideia peca por duas frentes. Por um lado, invisibiliza o papel produtivo do homem na produção da vida, tanto na fertilização, como na asseguração da subsistência dos descendentes. Por outro, elimina a possibilidade da procriação surgir como fruto de uma relação consensual e de cooperação entre os sexos. A insistência em compreender o capitalismo como uma forma de patriarcado assente na divisão sexual do trabalho através de meios coercivos, obriga-nos a admitir um nível de determinismo biológico necessário à continuação do modo de produção capitalista. 

Alternativamente, ao assumirmos a dinâmica central do capitalismo, podemos pensar o trabalho de reprodução, e o trabalho de produção social como passíveis de subjugação pelo capital. Em suma, e apesar do papel histórico que a dominação patriarcal teve (e tem) no desenvolvimento do capitalismo, a relação entre homens e mulheres neste sistema não deverá ser tida como fixa. Independentemente da alteração das dinâmicas entre as forças produtivas inerentes à criação da vida (neste caso, a transformação da ordem social patriarcal), a produção da vida em si manter-se-á suscetível à apropriação e transformação pelo capital. Mesmo aceitando a transcendência da divisão sexual do trabalho, a “superexploração” identificada por Mies poderia identificar novas vítimas, outras “colónias”, novas fontes de trabalho não remunerado, que assegurando a subsistência dos trabalhadores, continuariam a permitir a exploração da força de trabalho assalariado. Seguindo esta lógica, da mesma forma que o patriarcado poderia sobreviver à transformação das relações de produção, as dinâmicas de produção poderiam também adaptar-se a uma ordem social não patriarcal. A relevância da questão que fica é discutível, “poderia o capitalismo sobreviver à extinção do patriarcado?”, não sabemos, em teoria parece que sim, mas para Maria Mies a resposta é inequivocamente negativa.