O sórdido desejo

Às vezes, dentro do nosso âmago, aparece uma vontade que irrompe do nosso peito. Queremos muito aquela comida, queremos muito aquela pessoa, queremos sair, queremos entrar, queremos gritar, queremos partilhar, queremos estar sozinhos. Não surge de uma vontade imposta externamente e tem vários nomes: ikaigi em japonês, joie de vivre em francês. Tentar explicá-la extensivamente por palavras é uma forma de esgotar a sua complexidade, portanto, não o farei. É comumente descrito como o desejo. 

Para Freud, noção de desejo, que é inconsciente, é designada pelo vocábulo alemão Wunsch, cuja tradução geral é aspiração. Este desejo navega na dimensão do inconsciente, é indecifrado, é obscuro, padece de uma interpretação. No livro Interpretação dos Sonhos (1900) descreve a partida de uma experiência de desprazer em direção a uma experiência prazerosa motivada pelo aparelho psíquico. 

Apesar disso, no que toca ao pensamento ocidental, o psicanalista não estreou o pensamento sobre a importância do prazer, especialmente na sua relação com o corpo- já na Grécia Antiga se contemplava a sexualidade como um campo onde esta dimensão era possível. A mitologia assumia uma carga fortemente sexual, a masturbação era encarada com normalidade, bem como a homossexualidade. Esta política do corpo foi largamente alterada ao longo dos séculos. Podemos referir, por exemplo, a influência do estoicismo (entre 300aC a 250d.C.) que transformou radicalmente a importância que os filósofos gregos reservavam à busca do prazer, fazendo com que a sexualidade fosse concentrada no casamento.1 Esta corrente contribuiu para a estigmatização negativa do prazer associada ao ato exclusivamente matrimonial. Esse prazer era considerado duplamente penalizado se fosse expresso por mulheres, colocadas a um padrão de moralidade e restrição cultural ainda mais elevado. O romance Madame Bovary de 1857, ainda que escrito por Gustave Flaubert, um homem, foi condenado moralmente pela sociedade na altura e o autor foi processado pelo Sexta Corte Correcional do Tribunal de Sena. O que estava em causa seria a exposição de um tema tão obsceno como o adultério e a perversão do prazer feminino. O mesmo poderá ser dito da obra do autor russo Lev Tolstói, o romance Anna Karénina de 1877 no qual este descreve a represália e segregação sofrida pela protagonista do enredo ao estabelecer um caso-conjugal e ‘carnal’. Inclusive Bocage, poeta de Setúbal, esteve preso por perturbar os costumes 

Por acaso, é impossível o amor no século XXI?, tem questionado o filósofo sul-coreano, Byung-Chul Han. Tem nos falado da ascensão do narcisismo num inferno de iguais, em que a ideia do Outro já não tem espaço porque para que exista o Outro é preciso a vontade, o desejo da diferença. Descreve que esse encontro, em que não se conhece tudo sobre a pessoa com a qual interagimos, mas no qual só é possível fazer induções, se chama erotismo. Não pretende ser um mercado de produtos, mas sim uma expressão, em primeiro lugar, da curiosidade. O desejo passa a requerer o esvaziamento do eu no outro, e a própria libido acaba assentando na própria subjetividade.2 

A deriva neoliberal da supremacia do sujeito tem-se também imiscuído na forma como contemplamos a nossa interação com os outros, apelando à morte da curiosidade e do erotismo. Para que é que nós desejamos se consideramos que já conhecemos fundamentalmente tudo sobre qualquer pessoa antes desta se poder pronunciar? O mistério do resultado da experiência é o que permite o tango entre o estranho e o familiar. 

Através da teoria da simulação de Baudrillard, expressa no livro Simulacro e Simulação3, podemos pensar em como esta distinção serve para confundir as duas categorias. O autor reclama que, na experiência pós-moderna, a sociedade substituiu toda a experiência real por uma simulação e que os simulacros não escondem nem medeiam a realidade – reclamam que esta é irrelevante. No que toca ao que vivemos, cada vez temos mais acesso à simulação da experiência real dos nossos desejos e menos à dimensão corpórea das nossas dimensões. Plataformas como OnlyFans, a hiperssexualização do mundo visual, a agressividade publicitária que preenche as nossas psiques e tenta criar o desejo onde ele não existia anteriormente (uma das leis primordiais do marketing). 

Então, porque temos cada vez mais pudor da experiência sexual e do tato, como se tornou a interação um espaço de pavor onde temos de ser guiados? Como é que a simulação e a mercantilização da experiência, a intermediação pelo capital, se tornou a forma primária de satisfazermos a mais fundamental ferramenta de mobilização da nossa mente e do nosso corpo? 

1 Salles, Ana Cristina Teixeira da Costa, and Paulo Roberto Ceccarelli. “A Invenção Da Sexualidade.” Reverso, Círculo Psicanalítico De Minas Gerais

2 Han, Byung-Chul, et al. The Agony of Eros. MIT Press, 2017.

3 Baudrillard, Jean, 1929-2007. Simulacra and Simulation. Ann Arbor :University of Michigan Press, 1994.