Imagine-se um Centro Comercial, construído nos anos 80 do século passado, que nunca vingou enquanto foco de consumo capitalista. Este Centro Comercial, como tantos naquela altura – os designados ‘centros comerciais de primeira geração’, existentes em todo o país e muitos deles entretanto defuntos – é gerido por um condomínio, porque praticamente todos os seus espaços – 126 lojas, duas salas de cinema, dois cafés e uma discoteca – têm todas proprietários diferentes, que neste caso rondam a centena. Sublinhe-se: estamos nos anos 80 e 90, com tudo o que caracterizou essa época do ponto de vista da criação e experimentação musical, cuja expressão por um lado e fruição por outro não se podem dissociar destes espaços.
Não é difícil imaginar muito para perceber o que aconteceu – um encontro quase perfeito entre as necessidades de proprietários eventualmente desvalidos perante a ausência de rentabilidade daquelas lojas e a premência de inúmeras bandas em arranjar salas de ensaio. Uma relação simbiótica que gradual e organicamente se traduziu numa rápida ocupação do espaço, com muito ‘passa a palavra’ e relato de ‘boca em boca’ no ambiente fértil de colaboração que sempre foram os contextos de partilha e convívio destes músicos e artistas.
As lojas começam a converter-se em salas de ensaio a partir dos anos 90 e no início dos anos 2000 o CCStop estava praticamente tomado pelas bandas, pelos músicos, pela experimentação da música, pela cultura ‘underground’, pela contracultura. Junte-se a isto um problema de raiz do ponto de vista do licenciamento – o Centro Comercial STOP nunca teve licença -, uma enorme dispersão destes proprietários e uma panóplia de soluções, umas formais outras informais, para a utilização das salas, e o que resulta é um espaço comunitário essencialmente autogerido no que diz respeito ao seu quotidiano e às suas (des)rotinas.
20 anos depois o CCStop tem uma história bem mais comprida e complexa, feita de etapas e episódios de tensão e resistência, de experiências de organização entre músicos e lojistas a par de uma vivência mais desestruturada do espaço e dos processos, de críticas e de defesas, de negligência e de posicionamentos, de lugar na cidade e de sujeito político. O mais recente desses episódios tem o seu ponto liminar no dia 18 de julho deste ano, dia em que a cidade amanheceu com um cordão policial à porta do CCStop, os músicos e os lojistas impedidos de entrar, e um despacho sem aviso prévio que determinava a selagem das salas por motivos de falta de licença. Passaram-se pouco mais de dois meses e a luta a que se tem assistido ganhou um lugar na história do Porto, com:
– um protesto naquele mesmo dia, com centenas de pessoas a gritar contra aquele encerramento coercivo;
– uma manifestação seis dias depois, que preencheu o percurso dos Aliados até ao CCStop de milhares de pessoas, milhares de vozes a entoar palavras de ordem pela sua manutenção e encheu de música as principais artérias do Centro Histórico da cidade;
– inúmeras assembleias da designada comunidade Stop e reuniões entre as associações existentes e o poder político local, das quais resultaram propostas e contrapropostas para a reabertura do espaço, com ‘diz que disse’ (e ‘diz que não disse’);
– disseminação pelos canais de comunicação do município de narrativas sombrias sobre os problemas do Stop – incluindo, só para dar um exemplo, a de que existem 594 queixas de ruído, quando, consultado o processo, se percebe que, dessas queixas, 593 são da mesma pessoa (vai muito mal a democracia quando é preciso fazer ‘fact check’ da comunicação veiculada pela Câmara Municipal);
– a reabertura do espaço com base em condições impostas – bombeiros à porta, formação em prevenção de incêndios para músicos, entre outras – para resolver o que afinal era um problema de segurança (depois de ter sido de licença, de ruído ou da existência de uma discoteca ilegal);
– um relatório de sistematização de patologias do espaço que, associado a um parecer solicitado pelo Presidente da Câmara aos respetivos serviços jurídicos, levou a novo anúncio de encerramento;
– e, por incrível que pareça, mais uma quantidade de coisas para contar do que, desde lá, tem decorrido e captado a atenção da comunicação social – ou seja, não falta inscrição desta novela kafkiana que, como já vem sendo dito, não é de todo para cardíacos.
Mas o que explica tudo isto? O que explica que se afirme publicamente a defesa do que foi designado como um dos “ecossistemas culturais mais interessantes” da cidade por Paulo Cunha e Silva, então vereador da cultura (sim, esse, o da evocação da ‘cidade líquida’), para depois se decretar o seu encerramento e afirmar peremptoriamente uma suposta impossibilidade de soluções para a sua manutenção? O que explica tantos avanços e recuos em tão pouco tempo? Talvez seja simples a resposta – em linha com a senda gentrificadora só haveria dois finais possíveis para esta odisseia, na perspectiva de quem vai já a caminho dos 12 anos de governação da cidade (faz lembrar o outro, que despojou o Porto do seu Rivoli):
:: um final possível, aquele que permite assumir o papel do defensor deste tipo de cultura afinal tão importante para o Porto, e que se chegou a ver no horizonte – uma eventual reabilitação higienizadora daquele espaço que, bem mexidas as peças, até levaria o belo do selo do Porto. lá na porta;
:: o outro, em face da convenientemente percepcionada inoperância de músicos, lojistas e proprietários para avançar no sentido da intervenção no espaço – a extinção daquele pólo de atividade cultural não domesticada.
O que ‘os donos disto tudo’ no Porto não estavam a contar era com uma mobilização massiva, alargada, diversa e muito muito consistente de defesa de algo que, excepto à luz da estética neoliberal, seria impensável não defender: a preservação daquele viveiro de criação artística, único no país e além fronteiras. Ainda que com o ruidoso silêncio do Ministro da Cultura, que tem não só a possibilidade como a responsabilidade de intervir com medidas eficazes, o CCStop, a comunidade Stop e a cidade têm dado luta, demonstrando, como noutros casos (Bolhão, Batalha ou Rivoli) que a força da mobilização cidadã surte mesmo efeito e, se não dá em conquistas, pelo menos causa mesmo mossa. Neste caso, é clarinho e bom de ver: “O STOP, o STOP, o STOP é tripeiro! Quem não gosta de formiga não atiça o formigueiro!”