Os Bancos Centrais face à “crise”: assegurar lucros contra o trabalho

No capitalismo, as crises expressam as contradições geradas pelas soluções aplicadas na crise anterior. Quando aumenta a pressão, o elo explode nas pontas mais fracas, mas essa mesma pressão atua em todos os cantos do sistema. Para entender o colapso de 2023, portanto, não devemos analisar apenas as escolhas gerenciais de bancos específicos, mas a atual etapa do capitalismo. O problema não são as decisões ruins de instituições como o Silicon Valley Bank ou o Signature: é o sistema financeiro atual.

Nas últimas décadas, os mercados foram inundados por reivindicações financeiras de propriedade que Marx denominou “capital fictício”. A avidez capitalista acelerada por cada vez mais lucro permite a presentificação de um valor futuro esperado em forma de título negociável. Essa expectativa de valor futuro torna-se um direito transacionável de apropriação a quem pagar uma taxa sobre o valor daquele papel. A partir da expectativa de valorização futura, constituem-se no presente gigantescas massas de capital fictício.

Há quinze anos atrás, a economia estava com excesso desses papéis (capitais fictícios). A forma como o mercado corrige o excesso de capital é desvalorizando-o, o que resultaria na quebra desses capitais. No entanto, sabemos que, independentemente do que afirmam os apologistas neoliberais, o capitalismo nunca será 100% mercado. Naquela altura, o Estado interveio para impedir que esses ativos fossem desvalorizados e a quebra de uma série de instituições financeiras. O Estado fez isto demandando estes papéis, por meio de um alívio quantitativo. Contudo, esta intervenção foi acompanhada do reforço do mantra da austeridade, que afirmava ser necessário cortar as despesas não financeiras para financiar esta atuação do Estado. Ainda assim, essa medida não foi suficiente, e outras ações foram tomadas, como a aceleração da taxa de emissão de dívida pública para sua atuação nos mercados financeiros. Essa solução teve repercussões na crise das dívidas soberanas e na bolha de ativos financeiros na década seguinte. A queda da economia com a pandemia apenas expôs um capitalismo estagnado e deprimido que nunca se recuperou da crise anterior. Até agora, os estrategistas a serviço do capital optaram por não destruir as enormes massas de capital sobreacumuladas, mas isso não deixou de produzir efeitos.

A solução para a crise de 2008 foi salvar os bancos, ao custo de sacrificar as vidas de muitos. Mais de uma década de Quantitative Easing[1] gerou inflação nos preços dos ativos financeiros e incentivou a atividade especulativa no mercado de ações, beneficiado principalmente aqueles que lucram com a valorização desses ativos. 

 Esse cenário gerou impactos distorcidos na economia. As grandes instituições financeiras pegaram esse dinheiro novo e barato do banco central e investiram em ativos de baixo risco e razoável rendimento. Isso gerou um boom no preço de ativos e das propriedades, o  que impactou no aumento da desigualdade. No entanto, esse dinheiro barato também fluiu para aplicações duvidosas, como as fintechs e criptomoedas, que passaram a parecer mais atraentes e viáveis  diante das baixas taxas de juros em aplicações mais convencionais.

Não foi apenas nos rincões do venture capital  que isso aconteceu. As baixas taxas de juros nos investimentos mais seguros levaram instituições que precisavam de retornos relativamente baixos, mas constantes, a investir em pacotes como os Liability Driven Investment (LDIs) na Inglaterra, o que resultou na crise dos fundos de pensão do país e na intervenção de resgate do Banco da Inglaterra em setembro passado. A explosão das LDIs foi uma consequência do aumento das taxas de juros, basicamente o mesmo roteiro do que aconteceu com o SVB.

A reversão da década de taxas de juros muito baixas para as grandes instituições financeiras, no início de 2022, para um aperto monetário pelo Federal Reserve (Fed), teve o efeito oposto do que a década de QE teve e pavimentou o caminho para o que vimos em março deste ano. O Fed e outros bancos centrais subiram as taxas de juros para desacelerar os ganhos salariais, mas quando as taxas de juros sobem, os preços desses títulos emitidos a taxas de juros menores caem, e os preços das ações tendem a seguir o mesmo caminho. 

O aumento das taxas de juros a partir do ano passado — diante de um cenário de desaceleração do crescimento global, inflação elevada, redução dos investimentos e dos conflitos na Ucrânia — foi mais uma expressão das soluções dadas pelas classes dominantes às crises: forçar mais derrotas à classe trabalhadora. O mecanismo esperado é induzir uma recessão e desemprego para assustar os trabalhadores em suas demandas por maiores salários diante da inflação. A “solução” para o problema da inflação é matar o paciente para eliminar a doença, o que significa desacelerar ainda mais a economia e empobrecer os mais pobres. 

O Banco Central dos EUA e de outros países centrais encontram-se em um dilema. Embora considerem a recessão necessária para manter os salários baixos o suficiente para garantir altos lucros e preços de ações às empresas, aumentar as taxas de juros poderá reverter os quinze anos de gigante aumento dos preços dos ativos do setor FIRE[2].

Os sistemas financeiros do norte global habituaram-se, desde 2008, com pouco crescimento, pouco investimento e baixas taxas de juros. Embora a economia tenha permanecido relativamente estagnada, o estoque de capital fictício no mundo multiplicou-se, levando-nos a crer que mais crises estão no horizonte devido a esse excesso de capital produzido. Um estudo sobre fragilidade bancária apontou que 186 bancos nos Estados Unidos estavam vulneráveis a uma corrida aos depósitos, e que o valor de mercado dos ativos do sistema bancário é USD$ 2 trilhões inferior ao seu valor contábil. É de se esperar mais turbulência no horizonte próximo.

Se o empobrecimento dos trabalhadores é o efeito desejado, esta turbulência nas instituições financeiras não parece ser algo que os Bancos Centrais queiram. E aumentar as taxas de juros implica no risco de transformar todo o sistema bancário em algo próximo ao SVB. 

As atuações dos Banco Centrais nos próximos meses terão impactos gigantescos na economia e na vida da classe trabalhadora. Irão continuar a aumentar a taxas de juros sob a alegação de combater a inflação, ou vão frear? A primeira opção ainda parece a mais provável, e implicará em mais desses eventos e tensões, impactando não apenas instituições financeiras, mas também no aumento do endividamento de famílias e empresas, do desemprego e da possibilidade de recessão.

Em termos de avanços na regulação financeira, de indicadores econômicos e sociais, a crise de quinze anos atrás ainda não foi superada. O mesmo SVB que era “pequeno demais para ser regulado”, tornou-se rapidamente “grande demais para quebrar”. Não podemos deixar de pensar que isso tem relação com o perfil de seus principais clientes, parte fundamental da estratégia de poder imperialista dos EUA e base de apoio do Partido Democrata.

O que constatamos é que o sistema bancário atua como o proprietário do Tesouro estadunidense. A ideia de bancos públicos pode parecer assustadora, mas o que dizer do próprio Tesouro atuar como uma entidade totalmente privatizada, como um servidor da banca? Se não encararmos a banca como um serviço de utilidade pública, é o governo que se torna um servidor dos bancos.

A socialização das perdas da elite bancária por meio de resgates do governo poderão aumentar ainda mais as já recordes dívidas do setor público, pressionando por mais austeridade a prejudicar os serviços de bem-estar.

As soluções consideradas progressistas afirmam que é necessário um maior grau de regulação, mas sabemos que isso não será suficiente. As agências reguladoras acabam por significar que a própria banca está a vigiar-se a si própria, o que não funciona. A banca deveria ser encarada como um serviço público. 

Se os bancos centrais, como aconteceu na Suíça e nos EUA, já estão a injetar dinheiro público em grandes bancos, por que não estatizar também a sua gestão? A banca deveria ser democraticamente supervisionada pelos trabalhadores, com juntas eleitas, limites salariais para altos executivos e participação popular. Além disso, os Bancos Centrais deveriam ser permeáveis às demandas dos trabalhadores e não apenas das elites financeiras. 

O financiamento da economia a partir de bancos de propriedade pública, que fizessem parte de um plano geral de financiamento e investimento, seria o caminho para escapar a crises cada vez mais avassaladoras para os trabalhadores. Contudo, estaríamos então a exigir algo que sabemos que o capitalismo não poderá ceder: pior para os que o defendem. As mesmas crises que são mobilizadas pelas classes dominantes na construção de discursos de destruição de direitos e ataques à classe trabalhadora, poderão servir-nos como alavanca para a luta antissistêmica.


[1]  Quantitative Easing (ou “Alívio Quantitativo”) é uma ferramenta usada pelos Bancos Centrais. Por meio dela, estas instituições injectam directamente dinheiro na economia comprando ativos (títulos públicos e privados) de bancos comerciais e outras instituições financeiras, injetando dinheiro novo no sistema financeiro, com o objetivo de aumentar a oferta de dinheiro que circula na economia e impactar para baixo as taxas de juros.  

[2] O acrônimo inglês para os setores de “Finance, Insurance, and Real Estate”, ou de finanças, seguradoras e imobiliárias.