Os mortos-vivos: a necropolítica europeia da imigração

Recentemente, o governo de direita britânico apresentou uma nova proposta de lei de imigração e asilo, denominada “Stop de boats”, dirigida aos migrantes que atravessam o canal em pequenas embarcações, com enorme risco de vida: os migrantes serão presos, verão os seus pedidos de asilo considerados inadmissíveis e serão deportados para o país de origem ou para países terceiros. É ainda retirado às vítimas de escravatura ou tráfico de seres humanos a proteção contra a expulsão, deixando essa condição de constituir razão para a concessão de licença de permanência. 

Também o governo italiano aprovou há pouco um novo código de conduta obrigatório para operações de salvamento no Mediterrâneo, que aumenta desnecessariamente o risco de morte. Entre várias disposições, o código obriga os navios a desembarcarem logo que a primeira operação de salvamento esteja concluída, mesmo que a ONG detete outros migrantes no mar e tenha capacidade de os salvar. O código obriga igualmente os navios a seguirem diretamente para o porto indicado pelas autoridades italianas, independentemente da sua localização, e proíbe a transferência de migrantes salvos para embarcações maiores.

Todas estas propostas se inserem numa política de imigração que tenta diminuir a entrada ilegal de migrantes e refugiados e facilitar a sua expulsão. Mas também uma política que torna ainda mais precária a vida destas pessoas.

Mais de 25.000 migrantes terão morrido no Mediterrâneo entre 2014 e 2022. São mais de metade do total de migrantes mortos em trânsito estimado pela ONU para o mesmo período no mundo inteiro. Nestes 25.000 não se incluem os migrantes ou refugiados que morreram nos campos em solo europeu ou nos países da margem sul do Mediterrâneo para onde são deportados. E não se incluem os que terão morrido durante a travessia mas não foram contados por ninguém. O Mediterrâneo é o maior poço de corpos do mundo. 

Nos barcos os migrantes não têm direitos. Ser criança, mulher, idoso, recém-nascido, grávida, doente, adulto, homossexual, muçulmano, cristão, negro, árabe, branco, todas essas marcas são apagadas pela brutalidade da existência apenas do corpo que respira. Até deixar de respirar. A viagem despoja os migrantes das marcas das suas múltiplas identidades, dos direitos associados a condições e até mesmo dos mais básicos direitos humanos. São corpos de indivíduos despossuídos de tudo, sobretudo da dignidade mais elementar. São corpos desumanizados.

São pessoas em fuga, fugindo de uma morte certa nos países de origem para uma morte invisível no mar ou nas costas marítimas europeias. Despojadas do “estatuto político e reduzidas à vida nua”, os migrantes são atirados para a zona de indistinção entre a vida e a morte, nas palavras de Agamben, ou para o “limite exterior da vida” segundo Mbembe, uma zona onde não existe nada que assegure a manutenção dos seus direitos humanos. Os corpos dos migrantes são corpos de mortos-vivos.

Nada disto acontece devido a tragédias ou catástrofes “naturais”. Pelo contrário, tem causas e culpados. Toda uma economia política das migrações, das rotas, das guerras, das relações entre países, mas também do sistema de produção, da exploração, da propriedade, da extração de recursos e da apropriação das mais valias. Ou seja, relações de poder. A esta economia política sobrepõe-se uma necropolítica, uma política sobre quem tem importância para ser salvo e quem não importa que morra.

De facto, o modo como os governos europeus têm gerido a questão dos migrantes e refugiados constitui uma verdadeira necropolítica. O conceito de necropolítica, de Mbembe, ajuda a perceber como os instrumentos e políticas dos Estados são usados para colocar certos grupos em condições de vida precárias, relegando-os para uma condição de “mortos-vivos”. A necropolítica é uma “política da morte”, que Mbembe descreve como “a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é descartável e quem não é”. Existe um cálculo por detrás de quem deve viver e de quem tem de morrer, que faz com que, de modo geral, os migrantes vítimas dos afogamentos sejam corpos não brancos, não ricos, não europeus, um cálculo que é racionalizado como a única forma de os europeus, os que estão dentro das muralhas da fortaleza, poderem ter uma vida melhor. Nas palavras de Mbembe: “O cálculo da vida passa através da morte do Outro”.

A ausência de recursos de salvamento, o condicionamento de portos de desembarque, a criminalização do salvamento, os acordos de financiamento a países de origem ou de trânsito para externalizar o controle de fronteiras, os campos de refugiados, as capturas no mar e entrega a países onde os direitos dos migrantes não são assegurados, tudo isto são formas pelas quais opera a necropolítica dos Estados europeus para defender uma fortaleza chamada Europa, de modo cada vez mais indiferente face à tragédia humana e um bom exemplo da vitória do direito dos mais fortes sobre os direitos universais.