
Os ventos do povo chileno
Rodrigo Sousa
No dia 4 de setembro ficámos a conhecer o resultado do referendo à Nova Constituição Chilena: 62% pelo “rechazo” do documento constituinte e apenas 38% pela aprovação. Apesar das sondagens já o terem previsto, um clima de surpresa paira no ar. Este resultado parece contrariar os avanços dos últimos anos, marcados pela revolta ao legado de Pinochet e pela abertura a profundas mudanças sociais. Cabe-nos agora analisar os vários porquês desta derrota e perceber o que o futuro pode reservar ao povo chileno.
Um início atribulado
O processo de redação da proposta para a nova Constituição chilena parecia abrir algo sem precedentes: a demanda do povo chileno de convocar eleições para criar uma Convenção Constitucional que incluísse indivíduos fora da esfera partidária e que fosse representativa da sociedade chilena (sendo esta paritária e com lugares reservados aos povos indígenas) ia mesmo acontecer.
Assistia-se assim a uma mudança drástica do sistema político chileno, onde os clássicos partidos tremiam. No entanto, o sonho rapidamente se tornou um pesadelo: não só assistimos a um caos político nunca antes visto, onde constituintes pediam para votar durante o banho e até realizavam festas em piscinas encerradas de hotéis, como vimos também uma dificuldade enorme de obter consensos sólidos. Tudo isto gerou descontentamento na população chilena, novamente dececionada com os processos democráticos. Foi, aliás, com este descontentamento, que dentro da própria Convenção se começou a desenhar um cenário de rejeição do projeto constituinte.
Pós-verdade no país da esperança: como transformar uma eleição
Seis dos sete jornais diários em circulação no Chile pertencem a dois grandes grupos económicos. Perante a batalha política em torno da Constituição, estes grupos tentaram condicionar o sentido de voto dos chilenos: desde o destaque às iniciativas chocantes de micro-grupos de Constituintes à criação da “Chilezuela”, surgiu assim um declive social onde a esquerda era encurralada e o Rechazo crescia.
Esse declive aprimorou-se quando o então constituinte Bernardo Fontaine, eleito por uma lista da direita radical, protagonizou a capa do jornal “Las Últimas Noticias” afirmando que os trabalhadores não seriam donos das suas pensões após a rejeição da iniciativa cidadã “Con Mi Plata No”, que pretendia incluir pontos sobre as pensões na Constituição – algo que o governo pretendia regular pela via parlamentar. O porta-voz desta iniciativa era nada mais nada menos que Francisco Orrego, apoiante de Kast nas últimas eleições, que fez alusão a essa capa para causar revolta nas milhares de pessoas envolvidas na sua iniciativa.
Sondagens passaram então a mostrar uma rejeição inédita ao processo constituinte. Esta campanha durou mais de 4 meses, criando monstros como o falso fim do financiamento estatal às escolas privadas, o fim do sistema de saúde privado e a expropriação de casas. A Fundácion Ciudadanos en Acción, da qual Fontaine foi diretor, viria mesmo a gastar mais de $80 milhões de pesos chilenos em anúncios nas redes sociais de modo a reforçar a sua narrativa. A longo termo, parece ter sido vitorioso: sondagens entre 120 residentes dos 12 municípios mais habitados na Região Metropolitana mostram que muitos votaram a favor do “Rechazo” com medo de todos os mitos criados à direita.
Uma Constituição para quem?
Seria no entanto ingénuo pensar que a derrota de uma eleição se pode atribuir apenas aos meios de comunicação. A verdade é que uma Constituição tão abrangente a nível de direitos sociais acabou por ser rejeitada por todos os setores da sociedade chilena que pretendia proteger: machupes, indígenas, mulheres, pessoas LGBTQI, pessoas racializadas e as pessoas das classes mais pobres. Sabemos que a esquerda perdeu ao não conseguir falar para estas pessoas: não só não conseguiu resistir às narrativas da direita como não conseguiu simplificar uma Constituição que contém 388 artigos, tendo ainda falhado na criação de uma solidariedade que fosse além de classe e que incluísse também as diversas identidades. O povo chileno sentiu assim que os direitos universais a que apelou na revolta de 2019 estavam a ser diminuídos perante preocupações sociais identitárias válidas, mostrando que a esquerda não soube apresentar um projeto de emancipação que criasse laços conscientes entre todas, todos e todes.
Parte dessa derrota está também interligada com a rejeição das opções políticas de Boric: não se pode esperar que uma Constituição tão progressista em direitos indígenas tenha a aprovação desse setor ao mesmo tempo que decide militarizar zonas habitadas por estes mesmos, mostrando assim grandes contradições práticas.
Continuará “la estrella de la esperanza”?
Perante este resultado, a esquerda e o governo de Boric têm enormes dificuldades: encontram agora uma direita com uma chama reacesa que não vai parar enquanto não conseguir boicotar o processo social progressista que o Chile protagoniza há anos, seja através de campanhas, boicotes legislativos ou até mesmo pressão para uma nova forma de elaboração constituinte. Mas não nos deixemos enganar: os 78% que queriam uma mudança de Constituição em 2020 continuam atuais e é nesse campo que a esquerda deve reinterpretar as suas lutas e tentar reconquistar o povo, que um dia já tanto sonhou em conjunto. É essa a luta necessária para que a estrela da esperança não morra.