Na transição para uma economia mais adequada à justiça climática alguma Esquerda tende a privilegiar a salvaguarda do emprego presente mesmo que à custa da manutenção do uso de combustíveis fósseis. Mas nem o movimento climático pode esquecer os trabalhadores e a luta pelas suas vidas nem estes podem abandonar a luta pelo clima. A Esquerda de que precisamos faz a síntese entre as lutas pelo pão e pelo planeta.
Quando a luta climática abandona os trabalhadores
Em 2019 rebentaram os novos movimentos por justiça climática principalmente no mundo ocidental. Estes movimentos, essencialmente de classe média e constituídos por jovens (geralmente estudantes), começaram a deparar-se com um desafio político à medida que a sua expressão popular se foi visivelmente reduzindo. As manifestações foram minguando e a comunicação social começou a esquecer o assunto. Tendo em conta que, nestes movimentos, a recusa da forma partido é rejeitada, especialmente pela juventude, ficaram essencialmente dois caminhos disponíveis para a revitalização: um caminho para a institucionalização do movimento e outro para a sua radicalização. A primeira possibilidade tornava a cooptação do movimento mais fácil enquanto a segunda, que poderia acentuar um modo de luta subversiva e radical, apresentava a necessidade de juntar mais força social e de criar alianças com outros segmentos sociais.
Uma das primeiras tentativas foi a procura de interligação com os movimentos dos trabalhadores. Como estes movimentos por justiça climática não são constituídos por trabalhadores ou por pessoas envolvidas em modelos de ativismo laboral e sindicalismo, esta intervenção só poderia ser feita de forma exterior, a partir da intenção expressa de uma aliança entre os diferentes modelos e práticas organizacionais. Um exemplo concreto permite ilustrar como isto pode correr mal.
O fecho da refinaria de Matosinhos em 2021 foi uma tragédia social. Resultou no despedimento de 500 trabalhadores e 1.000 prestadores de serviço, com a extrema oposição dos representantes da Comissão dos Trabalhadores. Na altura, o deputado bloquista José Soeiro posicionou-se contra o argumento da GALP (de que o encerramento da refinaria baixaria as emissões de dióxido de carbono) defendendo que a população continuaria “a consumir combustíveis enquanto não houver uma alteração dos padrões de consumo”[1]. Criticava-se o facto de a transição instaurar “uma deslocalização da produção, por exemplo para a refinaria da Repsol na Corunha, ligada por um pipeline até à fronteira portuguesa”[2]. Em sentido contrário, João Camargo (dirigente do movimento Climáximo) escrevia na mesma altura que seria preciso fechar mais do que essa refinaria, uma vez que “só há uma resposta ao argumento da deslocalização da refinação e da produção: a resposta é que não podemos usar mais combustíveis fósseis.” [3] A argumentação lógica é legítima e a análise partilhada por muitos militantes bloquistas.
O que acabou por acontecer foi que a refinaria foi fechada num processo liderado por empresas privadas e pelo governo, que se autoproclamou de promotor da luta por sustentabilidade a nível do país. Os trabalhadores não viram as suas requalificações convertidas e foram abandonados, à semelhança de muitos outros processos de desindustrialização agressiva. De nada serviram as boas intenções dos ativistas que, taticamente, serviram para sustentar um processo de despedimento em massa sem salvaguarda por parte das entidades patronais.
Se o movimento climático abandona os trabalhadores nos momentos cruciais para a luta das suas vidas não se pode surpreender quando estes também o abandonam.
Quando a esquerda abandona a luta climática
Um sistema económico compatível com os recursos, que produza o útil e não o excedente e que garanta vidas dignas a todas as pessoas, é o objeto da luta histórica da esquerda. A apropriação de causas justas pelo capitalismo, instrumentalizando-as como mecanismo de opressão e divisão social, não é nova. Mas o combate da esquerda é a recentralização destes combates – o feminista, o climático, o antirracista etc.- no plano geral do combate da luta de classes e do fortalecimento das lutas das classes populares. Quando autoras, como Raquel Varela, argumentam pela “ausência de consenso” em relação ao aquecimento global, dizendo crer que esse argumento falso é o pretexto para os impostos verdes e o saque aos trabalhadores, o que querem na verdade dizer é que as alterações climáticas não são um problema com o qual nos devamos realmente preocupar. Este argumento é fraco por dois principais motivos:
1- Em primeiro lugar porque precisa de deturpar os dados para negar que não há uma alteração fundamental na produção e acumulação de dióxido de carbono, de forma sem precedentes a partir da revolução industrial. Este debate é pouco interessante, pois para o fazer é preciso alguma desonestidade intelectual ou o apelo a um grande ceticismo (“os estudos são todos encomendados”, “os cientistas estão todos comprados”, etc.)
2- Em segundo lugar este argumento esquece o conteúdo da célebre frase de Karl Marx “Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos”. A classe trabalhadora não é só a classe trabalhadora branca masculina da Europa. Evidentemente, dir-se-ia. São as milhares de pessoas que trabalham em países como o Uganda, onde as alterações climáticas já impactam o acesso à comida e água. São as populações de Valência, de Pedrógão, da Califórnia, pessoas que não se podem dar ao luxo de deliberar intelectualmente se as alterações são ou não uma evidência. Quem sofre com elas sabe o custo real do adiamento das políticas necessárias. E quando há uma crise são sempre os pobres que a pagam.
A esquerda de que nós precisamos, aquela que é do partido dos despossessados, dos condenados da Terra, não é a esquerda que se perde na transfiguração dos debates pelos termos das classes dominantes. É a que sabe ir à luta e fazer o debate nos nossos termos. A esquerda de que precisamos faz a síntese entre as lutas pelo dia de hoje e pelo dia de amanhã, pelo pão e pelo planeta.
Mais uma vez, a utilização de um exemplo concreto permite mostrar como a aproximação entre movimentos climáticos e movimentos laborais pode ser eficaz: a campanha dos Empregos pelo Clima. Esta campanha, embora com pouco fulgor militante no momento em que escrevo, “defende uma transição energética que dê emprego digno e socialmente útil a dezenas de milhares de pessoas” [4]. É inspirada na campanha internacional “Climate jobs” que tem trabalhado na identificação das áreas laborais que precisariam ser expandidas e na reflexão sobre como fazer uma campanha em conjunto com sindicatos e comunidades locais, de modo a garantir a qualidade dos serviços públicos e a sua utilidade social.
Nem todos os sindicatos são indiferentes às interligações entre a luta dos trabalhadores e a luta por justiça climática. Em 2024, o sindicato britânico TUC debateu quatro moções diferentes sobre a crise climática. Neste ano, a fábrica de engenharia automóvel da GKN em Florença, Itália foi ocupada por trabalhadores. O motivo inicial, uma disputa laboral, rapidamente se converteu num movimento por uma transição justa liderado por trabalhadores[5].
Os efeitos das alterações climáticas são sentidos em cadeia e são tão mais graves e intensos quanto menor o nosso controlo sobre eles. Mas a luta social organizada também desencadeia uma cascata de possibilidades e de imaginários, acelera tempos históricos e é mesmo capaz de mudar o mundo.
[1] https://www.esquerda.net/artigo/fecho-da-refinaria-de-matosinhos-e-uma-decisao-selvagem/72088
[2] https://www.abrilabril.pt/nacional/fechar-refinaria-de-matosinhos-porque
[3] https://arquivo.climaximo.pt/2021/10/27/porque-fechar-a-refinaria-de-sines-joao-camargo/
[4] https://www.empregos-clima.pt/um-plano-social-para-uma-transicao-energetica-justa-empregos-para-o-clima/
[5] https://www.esquerda.net/artigo/trabalhadores-italianos-ocupam-fabrica-contra-crise-climatica/92718