Não é fácil perceber o fenómeno da nova onda de exploração mineira europeia além das suas expressões locais, conciliar isso com um marketing político que ofusca os impactos irreversíveis da exploração do lítio nos ecossistemas e a pressa em submeter uma população a um esquema de progresso que não é feito para si, mas que precisa do seu sacrifício. O recente livro “Il Rimosso della Miniera”[1], do Collettivo Escombrera italiano, escrito de maneira formidável após o estudo do fenómeno nas montanhas de Portugal e Espanha, pode trazer alguma lucidez à discussão nacional contra a exploração do lítio.
“Os discursos gerais sobre o extrativismo, bastante vagos e idealistas, de tipo anticapitalista, anticolonialista e ambientalista, não nos parecem adequados para apoiar as populações que se opõem às minas e que, plausivelmente, se perguntam por que devem elas – mais uma vez – pagar o preço do progresso nacional e europeu. Ao mesmo tempo, as posições identitárias ou localistas também não parecem eficazes. No plano europeu sobre matérias-primas críticas e estratégicas, não encontramos palavras que descrevam um projeto de desenvolvimento voltado ao lucro e ao progresso através da exploração e da expropriação; em vez disso, há muitas palavras que remetem ao mundo da guerra, do sacrifício e da competição agressiva entre Estados.”
Tantas vezes até os olhares mais informados têm zonas de invisibilidade, o que não é problema quando não somos “nós” os invisibilizados. Por vezes, as lutas da cidade e do campo não se harmonizam mais devido a incompatibilidades profundas no discurso de ambos, mas sobretudo pela extrema mercadorização de todos os aspetos da vida urbana, em oposição a uma forma de rural em que o valor de uso tem uma função essencial no tecido social (refiro-me às terras de uso comum, os baldios, geridos por assembleias e onde uma grande parte dos terrenos para a exploração mineira se encontra). Esta naturalização da vida em mercadoria é também a sua alienação completa dos seus meios de produção: uma transformação antropológica em Homo Economicus que, sem dúvida, se faz a alta velocidade na cidade, pela sua abertura a um mundo/mercado que a homologa. E é também assim que as ideias “progressistas” importadas reduzem a batalha material à batalha ideológica. No acampamento pelo Barroso “não faltam, portanto, as controvérsias relacionadas com os comportamentos, o respeito pelo local, o barulho e, às vezes, os discursos progressistas dos jovens participantes, incompreensíveis para a população local.”
A questão ambiental no Barroso não se pode resumir a um conservadorismo de manter a paisagem assim como está; os agricultores estão bem conscientes da relação dialética do seu trabalho com a forma dos montes cultivados. Há comunidades que ainda têm em mãos os meios da sua subsistência, que não dependem do mercado global para se manter (evidentemente que há coexistência com a economia capitalista, como o agroturismo; a particularidade é o grau menor desta dependência a um mercado global). A população em Covas do Barroso, abandonada e marginalizada pelo poder central, demonstrou bem o seu descontentamento nas instituições através do boicote que organizou às eleições, um protesto que deveria colocar em crise a legitimidade do nosso sistema representativo.
“A atenção dos nossos interlocutores para os locais de proteção ambiental, para os recursos naturais, para a paisagem em geral, não parece ser puramente ambientalista, ou seja, não é simplesmente baseada no facto de que a destruição da chamada ‘natureza’ seja algo errado em princípio, mas parece ser mais determinada por uma espécie de sentimento de traição por parte das instituições. A preservação da natureza, a não contaminação dos recursos hídricos, a conservação da paisagem rural parecem, para muitos, ser as pré-condições de seu estilo de vida e do projeto de desenvolvimento que, até alguns anos atrás, antes do projeto da mina, havia sido definido e aceite.”
É claro que ninguém os leva a sério, os partidos políticos citadinos e longínquos projetam lá a sua ideia de progresso social, vendo o campo como um estágio primário da civilidade. A vida de campo não é uma à espera de se tornar de cidade; existe um sentimento de fruição da vida como é (eu sei, coisa que parece inconcebível dado que nem um shopping center têm). A questão do Barroso multiplica-se por tantos outros sítios do interior de Portugal e além-fronteiras. Cerca de 30% do território português está designado para prospeção mineira e destinado a sacrificar o seu futuro para saciar as metrópoles. A própria atividade da prospeção geológica impede já a pastorícia devido a aberturas de buracos largos onde o gado cai – prospeções protegidas pela polícia, que servem os interesses de privados no “nosso” território, longe de ser uma mera atividade de investigação científica inócua (revela apenas desprezo por quem ocupa o território).
“Em todos os lugares é propagada e anunciada uma promessa: a de um futuro mais limpo e próspero; um futuro, no entanto, baseado no lítio, indispensável para as baterias dos aparelhos tecnológicos. Como sempre, o comboio do progresso convida os viajantes a embarcar, sem revelar o preço do bilhete; enquanto isso, a ‘febre do ouro branco’ redesenha os contornos das montanhas portuguesas.”
“A extração do lítio das pegmatites requer escavações a céu aberto. Em qualquer caso, o lítio deve ser sempre refinado”, ou seja, não se pode obter o lítio sem esburacar aquilo tudo. As minas são projetadas para 20/30 anos, dependendo do tamanho das reservas, mas sobretudo da procura desse recurso no mercado. Um exemplo histórico pode servir para reduzir (ou eliminar) o entusiasmo extrativista. Depois da Segunda Guerra Mundial, as minas portuguesas de volfrâmio acabaram rapidamente com a “febre do ouro negro”; deixaram para trás um ambiente poluído, inútil para a agricultura, montanhas cheias de cicatrizes e populações com traumas geracionais, nostálgicas de uma forma de vida anulada. As marcas das minas vão muito além de trinta anos, e os danos sociais ultrapassam em muito os lucros que alguma burguesia conseguiu amealhar com isso. Compraram a neutralidade na guerra, sim, se por neutralidade considerarmos os vagões que vinham com ouro roubado a judeus, diretamente de Auschwitz para Portugal, para pagar o minério dos militares.
Não se pode conceber o novo extrativismo europeu abstraindo-o da conjuntura de competição capitalista pelo monopólio de recursos críticos. O lítio vem sempre associado ao discurso da transição energética (e como solução milagrosa para finalmente nos libertarmos dos recursos fósseis). No entanto, a China, que lidera a corrida ao lítio e efetivamente regula o seu valor de mercado, iniciou este caminho para sobretudo escapar ao petróleo negociado em dólares. O Ocidente, por sua vez, vê-se obrigado a ser criativo e encontrar novas reservas dentro de fronteiras, apostando na especulação entre depósitos e reservas e acelerando prospeções, de modo a conseguir competir com a China e manipular os preços a seu favor. É difícil dissociar historicamente as ondas de extrativismo com a corrida às armas ou, neste caso, uma competição económica que leva a vias de facto pelo controlo dos recursos (veja-se como, estranhamente, as terras raras assumiram um papel de protagonista nas negociações de “paz” na Ucrânia). A guerra sempre foi um mecanismo de desterritorialização, gerador de lucro, a custo de zonas ditas limítrofes e de pessoas “dispensáveis”.
A modernidade não é o estádio mais evoluído do humano; não temos a obrigação de nos modernizar e os “outros” não estão à espera de que os modernizem. Jamais “fomos” modernos. Sem revelar este possível preconceito da modernidade no nosso olhar, não conseguimos criticar as dinâmicas analogamente coloniais entre nós, portugueses. Sem fazer uma crítica às universidades e ao conhecimento científico, não revelamos a lógica de mercado que orienta os seus estudos, que não há uma ciência neutra; não conseguimos criticar o greenwashing e a folia da transição energética como vem sendo divulgada, sobretudo por democratas americanos. A técnica não tem necessariamente de servir o lucro; pode e deve ser controlada pelos coletivos para a usarem como desejarem para os seus fins. Produção para as pessoas e não pessoas para a produção.
“Se o camponês depende da terra, e a regenera e cuida para garantir seus frutos de estação em estação, o mineiro depende de escavar e exaurir inexoravelmente os seus tesouros: está, portanto, condenado a tornar-se um despojado, quando a reserva se esgota, as guerras acabam ou os mercados mudam. O que resta: montanhas de estéreis, água contaminada, crateras onde nada mais pode crescer, e um desolador despovoamento ainda à espera de que as promessas de recuperação sejam cumpridas.”
É importante ver a questão do extrativismo na permanente necessidade de expansão do capitalismo e em encontrar e formar novos mercados, mesmo que isso passe pela desterritorialização violenta dos modos de vida aí presentes, com a formação de massas de pessoas expropriadas prontas a trocar a sua nova miséria por um salário. A acumulação primitiva de que Marx falou não pára de se expandir (costumava ser no Sul Global), mas com as novas dinâmicas de competição voltou cá para dentro, como já não se via. Parece que a modernidade depende de mecanismos já bastante antigos e que o nosso olhar continua com fadiga em ver. Está na hora de usar o vocabulário anticolonialista cá dentro. O outro lado da acumulação primitiva é, de facto, a morte – convém que venha invisibilizada.
Vemo-nos no próximo acampamento pelo Barroso.
[1] Colletivo Escombrera. (2024). Il rimosso della miniera. La nuova febbre dell’oro nell’Europa in guerra. Segnalibro snc. Doravante, todas as citações em texto se referem a esta obra.