Pelas próprias mãos

Conta-nos a Glória que não há palavras para descrever tanta sabedoria, pela vida. Não pela Escola, que “não sabiam ler nem escrever, nem o tamanho de um boi! Mas a vida. A vida amarga, não é?, criadas…”. Criada de e para servir desde os quinze anos, e antes disso, já em casa. Quando interna, “das oito às quatro, das quatro à meia-noite, da meia-noite às oito. Internas!”. Até que, um dia, lá vinha no jornal Vida e Alegria, a São e as outras, com aquela crista das empregadas na cabeça, o aventalzinho das fardas, que mais tarde conseguiram abolir. Faziam parte da Juventude Operária Católica (JOC) e aí começaram os núcleos de mobilização. “Enfrentámos tudo! Foi assim uma coisa fora deste mundo. A gente agora olha e não sabe como teve tanta coragem, e muito doente, para morrer”.  

As memórias da pobreza no tempo do fascismo estão frescas: “Naquele tempo era mau, após a guerra. Eu nasci em 41, e depois não havia pão, e depois não havia caldo, e depois não havia feijões… Não há palavras, ninguém sabe o que isto foi, de miséria. Éramos seis irmãos, a minha mãe alcoólica. Começávamos a trabalhar cedo, mas eu em casa já me estourei”. 

Nascidas ou não, aproxima-se o quinquagenário da revolução que nos deu a madrugada pela qual esperávamos, e a liberdade. No entanto, para as empregadas domésticas tardou em chegar: a lei era e continuará a ser a de 1867 até 1980. O caminho da mudança foi feito numa improvável mobilização coletiva de Norte a Sul do país. 

Reconstituir esse trilho é descobrir que nas maiores condições de adversidade se semeiam laços a partir de espaços coletivos de organização, que juntam o que está separado e multiplicam — não os pães, embora pão, cuidado e habitação também tenham sido multiplicados neste sindicato — a ação. É também de constatar que a história de lideranças e organizações femininas não é contada e, não raras vezes, fica nos sótãos. E, por isso, recuperando material guardado e contado pelas próprias coligimos Mulheres todos os dias: uma exposição sobre o Sindicato do Serviço Doméstico.

Foi no processo de pesquisa do espetáculo Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua Patroa que conseguimos encontrar antigas dirigentes e consultar o recém-disponibilizado arquivo da CGTP-IN sobre o tema. Também para ele, mergulhamos em três livros principais que se dedicam à história social do tema: Empregadas Domésticas mulheres em Luta de Olegário Paz; Mulheres em Luta de Celeste Vieira e O Tempo das Criadas de Inês Brasão. 

Mas antes disso, existiram coincidências – não tão coincidentes assim: foi através do livro do Olegário — que nos chegou através do José Soeiro — que chegámos à Conceição Ramos (primeira presidente do Sindicato). Foi através deles que conhecemos a Lieve Meersschaert e, por sua vez, através dos seus arquivos e contatos, que chegámos à Glória de Aveiro, já em fevereiro deste ano, numa aventura contínua, e à Miep de Amesterdão, cujas fotografias incorporamos nesta exposição. Glória, cujo relato começa este texto, foi a dirigente do Sindicato mais ativa na delegação de Aveiro. A Lieve ligou a Bélgica e a Holanda ao movimento operário em Portugal, primeiro na Maconde, depois neste Sindicato e na Cooperativa dele nascida: a COOPERSERDO. Agora mobiliza e vela com uma “paciência impaciente” pela Cova da Moura. A Conceição, segundo a própria, tinha uma grande capacidade de convencer. Veio da terra, sozinha, não considerava justo como vivia, foi sendo espicaçada na JOC e foi pioneira na mobilização do sindicato.
Foram mais de 6.000. A todas ligava a JOC e a memória, a força e o alcance de mobilização que uma estrutura de intervenção política operária permite. Fizeram a luta pelas próprias mãos, através da organização sindical e cooperativa, trilhando uma história rara (mas não única) de um sindicato mobilizado inteiramente por mulheres no nosso país, construindo — todos os dias — grupos de discussão e redes de apoio, o financiamento e os laços de solidariedade internacional, os materiais de reivindicação, as suas escalas de trabalho, a comunicação entre si e até de esclarecimento da lei aos patrões. A exposição fica até 13 de maio na Fábrica das Ideias na Gafanha da Nazaré.